Entrevista Claudia Werneck para a Plataforma Diversa

Versão acessível da matéria publicada na Plataforma Diversa em 20/05/2025 no link https://diversa.org.br/noticias/oferta-plena-de-comunicacao-acessivel-e-indispensavel-para-uma-educacao-inclusiva/
“Oferta plena de comunicação acessível é indispensável para uma educação inclusiva”
Ao lançar seu 15º livro em nove formatos, Claudia Werneck defende de forma categórica: “sem acessibilidade física e comunicacional não há a inclusão”
Rosi Rico, com colaboração de Camila Cecílio Publicado em 20/05/2025
Descrição da imagem: Claudia Werneck sorri segurando o livro Tia Zilda – Histórias de Inclusão, com a capa voltada para a câmera. Ela veste uma blusa colorida e usa óculos. Ao fundo, há uma parede em tom amadeirado. A foto acompanha a legenda “Praticar inclusão é se dedicar a um roteiro de expansão da consciência para dar conta da humanidade como ela é, e não mais como nós gostaríamos que fosse”, defende Claudia Werneck. Crédito: Escola de Gente/PH de Noronha
“Inclusão não significa colocar para dentro quem está fora, porque isso significaria que ‘dentro’ está ótimo, e não está. Inclusão é uma proposta de revolução sistêmica para que a educação e outros sistemas se estruturem para atender as necessidades de todas as pessoas que de fato existem, e não daquelas que nós gostaríamos que existissem”. É o que defende a jornalista, escritora e ativista em direitos humanos Claudia Werneck, idealizadora da Escola de Gente — fundada em 2002 com o objetivo de colocar a comunicação a serviço da inclusão na sociedade, principalmente de grupos vulneráveis como o de pessoas com deficiência.
Claudia acaba de lançar seu 15º livro sobre inclusão e diversidade. Trata-se da obra Tia Zilda – Histórias de Inclusão, lançado pela WVA Editora e Escola de Gente, uma coletânea diversificada de contos, crônicas e artigos.
“Crianças precisam saber a verdade, que toda pessoa, desde que nasce, tem o mesmo valor humano, que não se mede por nada, não diminui ou aumenta. Essa é a conversa que precisamos ter com as crianças. E se ao final dela vierem com a pergunta: ‘por que algumas crianças têm deficiência?’ Respire, aliviada, e responda: ‘pela mesma razão que algumas não têm’. Esse trecho é um pequeno, porém potente, exemplo de como Claudia reitera, com firmeza, seu compromisso ético com a defesa dos direitos humanos.
Com prefácios de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas do Brasil; Sheila Kaplan, doutora em Literatura e jornalista da área cultural; e Diego Werneck Arguelhes, professor associado do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), a obra está disponível em nove formatos acessíveis: impressão em tinta, audiolivro, audiolivro com audiodescrição, PDF com audiodescrição, arquivo TXT com audiodescrição, arquivo DOC com audiodescrição, vídeo com Libras e legendas, vídeo em linguagem simples com todo o conteúdo do livro, e-book acessível com descrição de imagens e gráficos.
O livro pode ser baixado gratuitamente pelo aplicativo de cultura acessível “VEM CA”, da Escola de Gente, e nas plataformas digitais da organização. Além disso, a capa conta com um QR Code em relevo, que oferece acesso rápido a todos os formatos. Na versão física, a obra foi produzida com o uso de wire-o (espiral) para facilitar o manuseio por pessoas com dificuldade motora.
Ao conceder entrevista ao DIVERSA, a autora explica por que a oferta de livros acessíveis fortalece a educação inclusiva, comenta os avanços na política e no marco legal brasileiro e defende que a sociedade deve ser cada vez mais vigilante para responder com agilidade à onda conservadora para evitar retrocessos na garantia de direitos. Confira a entrevista completa a seguir.
Como foi o processo para tornar seu livro acessível em nove formatos?
Claudia Werneck: Livro, para mim, tem de ser muito acessível, com diversos formatos, porque senão vira um objeto de discriminação, e não de democratização de informação. O que eu fiz, na verdade, ao pensar na publicação deste livro, foi apenas acrescentar um formato novo: o do filme em linguagem simples, para que pessoas com deficiência intelectual e outras pudessem acessar o conteúdo do livro, tudo validado com pessoas com deficiência intelectual. Decidi acrescentar esse formato porque o livro será distribuído principalmente para estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Por que essa não é a realidade na maioria dos lançamentos editoriais?
As leis brasileiras dispõem que todo livro publicado deve ter pelo menos um formato digital acessível a ser vendido como o formato impresso em tinta. Na realidade, isso raramente acontece. Em 2011, a Escola de Gente e a WVA Editora – especializada em livros acessíveis, e incubadora da Escola de Gente -, lançaram a campanha “Todas as Pessoas Têm Direito a Conhecer todas as Histórias”, com o apoio do Ministério da Cultura, justamente para fortalecer a concepção de leitura acessível, o que transcende a ideia do livro acessível. Na época, publicamos o primeiro livro infantil do Brasil em oito formatos acessíveis, o “Sonhos do Dia”, de minha autoria, por meio da lei Rouanet, com patrocínio da empresa White Martins. Essa ação foi premiada na sede da ONU [Organização das Nações Unidas], em Viena, na Áustria, como um dos projetos mais inovadores do mundo na área de inclusão e acessibilidade.
Como ter livros acessíveis fortalece uma educação inclusiva?
A oferta plena de comunicação acessível é um atributo indispensável para uma educação inclusiva. Livros acessíveis, em diferentes formatos, como em vídeo com Libras e legenda, são fundamentais para garantir o acesso a conteúdos e histórias com equiparação de oportunidades a qualquer estudante; no caso quem é surdo ou surda. E o conceito de comunicação acessível vai muito além da relação sala de aula-professor ou professora. Por exemplo, em regiões mais empobrecidas, muitas vezes, a criança não tem deficiência, mas a pessoa responsável por ela, na família, é analfabeta, e a professora só se comunica com as famílias por escrito. Ora, se a escola não implementar um plano de comunicação acessível que resolva também esse dilema sobre como a professora vai se comunicar com a responsável pela criança cotidianamente, para mim não será uma escola de fato inclusiva, porque todo o sistema escolar deve se transformar.
Há mais de 25 anos, você perguntava “quem cabe no seu todos?”. No seu livro atual, você continua a dizer que “há sempre um sentido pronto para justificar a exclusão”, e exemplifica com o fato de muitos continuarem a usar adjetivos como especiais ou diferentes. Em 2025, o quanto podemos comemorar em termos de avanços no caminho da inclusão efetiva e o que ainda anda lento demais?
A inclusão, como conceito e prática, é um tema muito mal utilizado pela sociedade e pelos governos – e hoje, pelo congresso, principalmente. Quem de fato sabe que inclusão não significa colocar para dentro quem está fora, porque isso significaria que “dentro” está ótimo, e não está. Inclusão é uma proposta de revolução sistêmica, para que a educação e outros sistemas se estruturem para atender as necessidades de comunicação, por exemplo, de todas as pessoas que de fato existem, e não daquelas que nós gostaríamos que existissem. Sem sairmos dessa espécie de delírio coletivo que considera que o conjunto da humanidade é algo que existe a partir do nosso desejo, e continuarmos trabalhando com repertórios particulares de diversidade, estaremos longe da prática da inclusão, que deve ser cotidiana.
O que podemos comemorar? A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [PNEEPEI], de 2008; e, como leis, a assinatura da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que no Brasil foi assinada com valor de Constituição e a Lei Brasileira de Inclusão, a LBI. E movimentos como a Rede Brasileira de Inclusão [Rede-In], da qual a Escola de Gente e o Instituto Rodrigo Mendes (IRM) fazem parte, que diariamente realizam advocacy para interromper leis e projetos de lei que irão prejudicar pessoas com deficiência, infelizmente, muito comuns hoje em dia. E facilmente assimilados pelo senso comum como bons.
O que é uma escola inclusiva para você? Essa escola, na prática, é realidade no Brasil?
Tenho a minha definição de escola inclusiva, que escrevi para o livro “Quem cabe no seu TODOS?”. ‘Escola inclusiva é aquela onde as gerações se encontram, se reconhecem a partir de suas diferenças como parte de um todo indivisível, participando dos processos de aprendizagem juntas, durante os quais se testam eticamente e aprendem onde podem ajudar e serem ajudadas, se preparando para resolver novos e antigos dilemas que as gerações anteriores não conseguiram resolver.’ Essa ainda não é a realidade da maior parte das escolas no Brasil. E essa escola só será inclusiva, na minha opinião, se tiver como eixo estruturante uma ampla e diversificada oferta de comunicação acessível, que não é tudo, mas é um dos seus requisitos principais.
Como avançar na construção de uma educação inclusiva?
Profissionais da educação que fazem a gestão da escola, professoras e professores, todo mundo que trabalha dentro da escola deve fazer uma espécie de malhação psíquica e neuronal – o que vai incomodar mais no início, como toda malhação – sobre o conceito e a prática da inclusão diariamente. Com isso, acumularemos sinapses inclusivas, o que usualmente não temos. E isso diante de pessoas com muitas diferenças, além da presença de pessoas com deficiência como estudantes, gestores ou gestoras, professores e professoras. É preciso desenvolver uma nova ética, aquela que nem valoriza a diversidade ou as diferenças, nem a enaltece, porque sabe que elas são tão intrínsecas à humanidade que não precisamos celebrá-la, apenas propiciar momentos de verdadeira inclusão a partir delas. E, claro, conhecer a política a qual me referi acima [PNEEPEI] e trabalhar para implementá-la, o que os governos precisam fazer com muito mais empenho, recursos financeiros e devoção.
Estamos sabendo comunicar o que é inclusão (por exemplo, sabendo demonstrar a diferença entre acessibilidade e inclusão) para as pessoas?
Não. Existe um desinteresse pelo sentido real da palavra inclusão, ainda que esta seja cada vez mais utilizada. Usa-se o adjetivo inclusivo como se quer, e quase sempre sem vínculo com a oferta de qualquer acessibilidade, física ou comunicacional. Ou usam a expressão acessibilidade como algo opcional no contexto de inclusão. As próprias pessoas com deficiência, de tanto viverem sem direitos, também não solicitam a acessibilidade comunicacional que precisam, contentando-se com remendos ou migalha de uma acessibilidade mal feita, porque a acessibilidade deve ser oferecida por profissionais. A verdade, para mim, é que sem acessibilidade física e comunicacional não há inclusão. Entretanto, a oferta de acessibilidade por si só não é garantia de inclusão. Podemos ter um encontro de nazistas ou pedófilos plenamente acessível. Por isso, digo que ela é um atributo, e inclusão é processo construído todo dia a partir da oferta de acessibilidade.
Como a atual onda conservadora afeta a luta pela inclusão?
Afeta muito e exige uma atitude de sentinela cada vez mais ágil e firme, isto porque as ondas conservadoras têm o discurso que o senso comum adota, de quem ainda acha que inclusão é um conceito intuitivo e não uma área de conhecimento. A Rede-In trabalha, neste momento, contra o Código da Inclusão, que irá significar um atraso imenso para pessoas com deficiência em todas as áreas. Um projeto dentro do congresso brasileiro que, sem admitir, quer, na verdade, adulterar a LBI, de 2015. Um terrível retrocesso.