Internet acessível: Vai ter legado depois da pandemia?

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A primeira live acessível das redes sociais brasileiras - talvez do mundo - foi realizada pela Escola de Gente

Texto publicado originalmente em HuffPost Brasil

Por: Claudia Werneck

A macabra combinação de falta de acessibilidade comunicacional mais falta de internet de banda larga transformou o isolamento social em uma condição de sofrimento psicológico e de risco à vida sem precedentes para pessoas com todos os tipos de deficiência.

Ainda que não tenha criado a exclusão no mundo virtual, a pandemia da covid-19 exponenciou seus riscos e danos. Em março de 2020, o fluxo de informações sobre o novo coronavírus migrou repentinamente para o on-line — sem qualquer oferta de acessibilidade comunicacional. A distância entre quem podia acessar informações sobre prevenção e tratamento e quem não conseguia acessá-las por ser uma pessoa surda ou cega, por exemplo, se multiplicou em progressão geométrica em poucos dias.

Nem mesmo a OMS (Organização Mundial de Saúde) deu exemplo. Manteve sem oferta de recursos de acessibilidade seus pronunciamentos sobre o avanço da covid-19, excluindo, metaforicamente, milhões de vidas de suas recomendações sobre como salvar vidas.

Nessa revolução cibernética, pessoas com deficiência — a maioria vivendo abaixo da linha da pobreza e sem acesso à internet em suas casas e celulares — ficaram sem saber como se proteger e a suas famílias.

Alijadas do fluxo incessante de informações estratégicas que passaram a nortear as decisões de quase toda a população do mundo, pessoas com deficiência muito possivelmente chegaram à sua maior taxa de exclusão da História: um massacre que vem sendo ignorado tanto pela opinião pública e governos, quanto pelas mídias sociais, o ativismo pelos direitos humanos e os especialistas de tecnologia da informação. Quem está sobrevivendo à pandemia da covid-19 no mundo é necessariamente, também, uma testemunha viva dessa violação, ainda que não a perceba.

A macabra combinação de falta de acessibilidade comunicacional mais falta de internet de banda larga transformou o isolamento social em uma condição de sofrimento psicológico e de risco à vida sem precedentes para pessoas com todos os tipos de deficiência, e também para aquelas que são idosas, têm baixo letramento ou pouco domínio da língua do país onde residem, como refugiados.

Assim, preocupada em buscar respostas e soluções emergenciais para essa tragédia humana e social, a Escola de Gente - Comunicação em Inclusão, organização que fundei há 18 anos, criou o projeto “Hiperconexão Inclusiva - Informação acessível também é linha de frente”, em abril deste ano, com o objetivo de praticar a equidade no compartilhamento de informações via redes virtuais, ao vivo e no material disponibilizado on-line.

O “Hiperconexão Inclusiva” está alinhado com a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU - cuja ratificação no Brasil por meio de decreto legislativo completa 12 anos hoje, dia 9 de julho, e da Lei Brasileira de Inclusão.

O projeto está combatendo a acelerada exclusão virtual à qual pessoas com deficiência, e outros grupos, têm sido submetidas em função da pandemia. Para isso, vem tanto realizando lives acessíveis quanto mobilizando a sociedade, governos e outras instituições a realizá-las também.

Lives acessíveis são aquelas que oferecem simultaneamente Libras, legenda em tempo real e audiodescrição tanto ao vivo quanto na gravação que é disponibilizada automaticamente, depois, nas plataformas. Hiperconexão inclusiva é um conceito que desenvolvemos para caracterizar toda ação que é a mesmo tempo gratuita, acessível, utiliza tecnologia de ponta e nasce inspirada nos direitos humanos, entre eles o direito à comunicação.

A primeira live acessível das redes sociais brasileiras - talvez do mundo - foi realizada pela Escola de Gente no dia 2 de abril, com o tema “Saúde mental e Covid-19”. A estreia só foi possível por conta de uma “gambiarra tecnológica” que criamos unindo diferentes plataformas em uma espécie de hub de tecnologias integradas e interativas que conectam diferentes áreas: programação ao vivo, plataformas on-line e recursos de acessibilidade.

A solução da “gambiarra tecnológica” foi necessária porque as plataformas de redes sociais não disponibilizam mecanismos que permitam a oferta simultânea de Libras, legenda em tempo real e audiodescrição em transmissões ao vivo e na gravação disponibilizada on-line. Lives acessíveis exigem pré-produção e pós-produção acessíveis também, num magnífico exercício de equidade, do qual não é permitido escapar mais.

As lives acessíveis da Escola de Gente são, ao mesmo tempo, uma tecnologia social e uma tecnologia assistiva, porque têm baixo custo, são fáceis de serem replicadas, se adaptam a qualquer idioma e aprimoram a compreensão das informações por meio de dispositivos, infraestrutura e suporte técnico que atendem às necessidades individuais de comunicação de pessoas com deficiência.

De abril a junho deste ano, a Escola de Gente realizou 5 lives acessíveis sobre os desafios da própria pandemia. O impacto foi tão grande que a quarta live inovou mais ainda. Tornou-se uma metalive: nela disponibilizamos todo o processo de criação e de utilização de nossa “gambiarra tecnológica”.

A quinta live acessível foi, para mim, a mais importante. Dirigiu-se à infância, tendo a participação de 12 crianças na sala de reunião virtual como painelistas. Todas se manifestando em seus infinitos modos de existir e se comunicar. Realizamos 2 ensaios, nos quais a audiodescritora fez várias perguntas para cada criança, sobre qual a cor de suas peles, por exemplo, informação que é necessariamente autodeclaratória. Construímos com muito cuidado essa que foi a primeira live acessível para a infância das redes sociais brasileiras!

O impacto das nossas lives revela um interesse crescente em conteúdos virtuais com acessibilidade. Começamos com 85 pessoas assistindo à primeira transmissão ao vivo e, dias depois, já tínhamos 579 participantes simultâneas.

A metodologia, quero dizer, a “gambiarra tecnológica” da Escola de Gente já vem sendo utilizada pelo Unicef, pelo Congresso Nacional e pela Rede Não Bata Eduque, que recentemente realizaram suas primeiras lives acessíveis também.

Enquanto isso, a Escola de Gente segue mobilizando, apoiando e aprimorando seus processos na construção de lives acessíveis a partir da demanda de pessoas com deficiência. Passamos a oferecer dois tipos de audiodescrição, uma aberta e outra fechada em um segundo canal de áudio - demanda de pessoas cegas.

Por conta de pessoas com baixa visão, orientamos participantes das lives que estejam em ambientes com boa iluminação. E, por último, as lives acessíveis hoje oferecem legendas em tempo real também no ambiente virtual da reunião - e não apenas para quem assiste à live. É um processo integrado e coerente: fala de inclusão e pratica inclusão.

Mais de 80% das pessoas com deficiência no mundo vivem na pobreza, diz a ONU. O Comitê Gestor da Internet no Brasil afirma que 58% das famílias não têm acesso a computadores e 33% não têm internet. Neste contexto, a ideia de que informação acessível também é linha de frente como lema, conceito e prática vai permanecer para além da pandemia. Entretanto, a Escola de Gente quer mais.

A Escola de Gente quer mobilização e diálogo com plataformas de mídia social para que elas ofereçam acessibilidade efetiva e global. Quer melhoria, consolidação e disseminação da tecnologia social e assistiva que criou para cada vez mais participação social, política e democrática de grupos excluídos no acesso à informação. Quer disseminar seus tutoriais sobre acessibilidade em todas as ferramentas disponíveis para atividades on-line e ao vivo: tutoriais diferenciados para pessoas adultas e crianças, que necessitam de assistência adequada para exercer seus direitos.

A Escola de Gente também quer contar tudo o que aprendeu, principalmente no que se refere às lives acessíveis infantis. São reflexões relacionadas ao sistema de proteção integral previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Quer, ainda, que todos os países e a ONU adotem um novo padrão de expressão online para bilhões de pessoas usuárias. E quer, finalmente, dialogar com fundações internacionais interessadas em impactar exponencialmente o significado da comunicação no mundo pós-pandemia, pois informações acessíveis são a linha de frente para tornar o mundo virtual um espaço de comunicação sem barreiras.

Claudia Werneck é jornalista e escritora.