A iminente cessação do benefício de prestação continuada (BPC)

Texto publicado originalmente na plataforma JOTA.

Por: Ana Claudia Figueiredo

SEGURIDADE SOCIAL

A consequência mais perversa da disputa em torno da renda de acesso ao BPC.

Desde o final do ano passado o Brasil assiste à disputa entre os Poderes Legislativo e Executivo em torno do critério econômico para o recebimento do benefício de prestação continuada (BPC): de um lado, o Congresso atua em prol da ampliação da renda que assegura acesso a esse benefício e, de outro lado, o governo empreende ações no sentido de impedir essa ampliação.

O fundamento que orienta o empenho dos parlamentares é essencialmente a preservação da eficácia do artigo 203, V, da Constituição da República[1], enquanto o fundamento norteador da resistência do governo é, em síntese, o fato de ter sido criada despesa sem a estimativa do seu impacto orçamentário-financeiro e sem a indicação da respectiva fonte de custeio.

A consequência mais perversa desse embate – além da manutenção da exclusão de milhões de brasileiros que vivem em situação de miserabilidade social do amparo assistencial –  é a iminente cessação da concessão do BPC, caso não seja encontrado um consenso para a polêmica em torno da elevação da renda para a percepção desse benefício assistencial.

As idas e vindas do Projeto de Lei nº 55/1996 (Lei nº 13.981/2020)

Em 28 de novembro de 2019, foi aprovado pelo Senado Federal o Projeto de Lei nº 55/1996, que elevou o valor máximo da renda mensal de acesso ao BPC, de ¼ do salário mínimo (R$ 261,25), por pessoa da família, para ½ salário mínimo, por pessoa da família (R$ 522,50).

Na prática procedeu-se tão somente à atualização monetária dessa renda, o que ampliaria o número de famílias de pessoas idosas e com deficiência a serem atendidas por essa política de transferência de renda, não o valor do benefício em si, que continua sendo de um salário mínimo (R$ 1.045,00).

Embora o presidente da República tenha vetado[2] a atualização aprovada, o Congresso derrubou o veto presidencial, em 10 de março de 2020, fazendo prevalecer, a partir da publicação da Lei nº 13.981, de 23 de março de 2020[3], o critério de renda igual ou inferior a ½ salário mínimo para a concessão do BPC.

Para inviabilizar então a elevação da renda, o Ministério da Economia formulou, perante o Tribunal de Contas da União (TCU), pedido cautelar para que essa fosse suspensa até que estivessem implementadas as exigências constitucionais e legais para aumento da despesa, o que foi acolhido pelo relator, ministro Bruno Dantas[4].

Como o Presidente da Câmara dos Deputados informou ao relator que já existiam tratativas entre as lideranças dessa Casa legislativa para construir uma alternativa para a revisão do critério aplicável ao BPC, de forma a resolver os problemas apontados, o Plenário do TCU decidiu, em 18 de março de 2020, interromper a apreciação da representação, suspendendo os efeitos da medida cautelar deferida pelo ministro Bruno Dantas[5].

Em 23 de março de 2020, o presidente da República ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 662), com pedido de medida cautelar, perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Alegou, em síntese, que o processo legislativo referente ao Projeto de Lei nº 55/1996 “foi concluído sem a devida deliberação dos impactos orçamentários e financeiros implicados” e que a expansão da Covid-19 representaria mais uma razão para a suspensão imediata do aumento da renda do benefício de prestação continuada[6].

O Relator dessa ação no STF, ministro Gilmar Mendes, concedeu, em parte, a medida cautelar requerida, para suspender a eficácia do art. 20, § 3º, da Lei 8.742, na redação dada pela Lei 13.981/2020, enquanto não implementadas as condições previstas nos arts. 195, § 5°, da CF; 113 do ADCT; 17 e 24 da LRF e 114 da LDO.

No último dia 15 o Congresso Nacional apresentou agravo regimental contra essa decisão, que será julgado pelo Plenário da Suprema Corte.

Uma nova tentativa de solução do impasse: o Projeto de Lei nº 1.066/2020

A fim de concretizar as tratativas noticiadas ao relator da representação no TCU, foi aprovada, no bojo do Projeto de Lei nº 1.066/2020 (PL nº 9.236/2017 na Câmara), em 30 de março de 2020, uma regra de transição para o critério de renda do BPC: o teto seria igual ou inferior a ¼ do salário mínimo até 31 de dezembro de 2020, passando a ½ salário mínimo a partir de 1º de janeiro de 2021 (incisos I e II do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93)[7].

A  aprovação dessa regra, fruto da negociação construída entre Congresso e governo, superaria a alegação de inobservância da LRF, em relação à Lei nº 13.981/2020, e garantiria a ampliação dos beneficiários do BPC a partir de 2021, sem a ameaça de novos questionamentos do Executivo junto ao Judiciário ou ao TCU.

Aprovado, contudo, o Projeto de Lei nº 1.066/2020, que se transformou na Lei nº 13.982/2020, o governo, em vez de sancionar o conteúdo integral da regra de transição nele prevista, decidiu vetar o inciso II do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/930, no qual estava prevista a atualização monetária da renda a partir de 2021[8].

A consequência mais perversa da disputa entre governo e Congresso 

O problema mais grave que resultou dessa disputa é que, tendo sido mantido na Lei nº 13.982/2020 apenas o inciso que estabelece o critério de renda até 31 de dezembro de 2020, deixará de existir, a partir de 1º de janeiro de 2021, respaldo legal para a concessão ou manutenção do BPC.

Isso porque o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal não é autoaplicável[9], ou seja, a Lei Maior condiciona o direito ao recebimento do benefício à comprovação da inexistência de meios de subsistência pela própria pessoa ou por seu grupo familiar, conforme dispuser a lei.

O restabelecimento do aumento da renda do BPC no Projeto de Lei nº 873/2020

Um outro projeto em que foi incluído critério de renda para a concessão do BPC foi o Projeto de Lei nº 873/2020 (Substitutivo da Câmara dos Deputados)[10].

No parecer dado a esse projeto, o relator, senador Espiridião Amim (PP-SC), acolheu emenda destinada a restabelecer a renda de ½ salário mínimo para o recebimento do BPC e revogou o art. 20-A da Lei nº 8.742/1993[11], incluído pela Lei nº 13.982/2020.

Por ocasião da revisão desse Projeto de Lei na Câmara, o relator, deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), suprimiu a referência à renda de ½ salário mínimo para a percepção do benefício, apresentando parecer na forma da Subemenda Substitutiva Global de Plenário que, tendo sido aprovado, tornou superada a proposição do Senado quanto a esse aspecto.

Devolvido o Substitutivo à Casa iniciadora, o relator reinseriu no texto a atualização do teto para acesso ao BPC e a revogação do artigo 20-A da Loas, constantes do texto encaminhado à Câmara, por entender que, apesar de ter sido judicializada a questão, ainda não há decisão definitiva do STF. Afirmou também que esse debate já foi resolvido no Legislativo, quando derrubado pelo Congresso Nacional o veto presidencial nº 55/2019[12].

Aprovado com essas e outras modificações, o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 873/2020 seguiu, em 23 de abril de 2020, para sanção, oportunidade em que poderão ser novamente vetados os dispositivos relacionados ao limite de renda do BPC.

Situações que viabilizariam a concessão do BPC a partir de 2021

A concessão do benefício de prestação continuada após 1º de janeiro de 2021 dependerá, entre outras situações, da i) rejeição do Veto nº 3/2020, aposto ao Projeto de Lei nº 1.066/2020 –  e não judicialização da matéria pelo Executivo;  ii) sanção do Projeto de Lei nº 873/2020 sem veto à redação proposta para o § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 ou iii) aprovação de um novo projeto de lei estabelecendo uma renda para vigorar a partir de 1º de janeiro de 2021.

A lacuna legislativa a respeito – que ocorrerá caso nenhum desses cenários (ou outro) se materialize –, implicará um prejuízo enorme para pessoas idosas e com deficiência que vivem em situação de pobreza extrema. Esse prejuízo será mais grave ainda se considerarmos os gravíssimos impactos econômicos que a pandemia de Covid-19 desencadeará na vida dessas pessoas, inequivocamente mais amplos e profundos que aqueles causados na vida dos demais brasileiros.

Isso porque a baixíssima renda dessa parcela precisa cobrir não apenas as despesas comuns a todas as pessoas, como moradia e alimentação, mas também os custos decorrentes do avanço da idade e/ou da deficiência.

Para evitar o agravamento do cenário de dificuldades e barreiras em que se encontram essas pessoas, os poderes públicos precisam encontrar uma solução com brevidade. Sem isso, pessoas que deveriam receber do Estado a proteção social, estabelecida na Constituição da República, estarão abandonadas à própria sorte, relegadas ao sombrio destino.

ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO – Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito pelo UniCEUB e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes-RJ. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no CONADE