Covid-19 e esse deus chamado tempo

Texto publicado originalmente no HuffpostBrasil.

Por: Claudia Werneck.

Em qual matemática a humanidade poderá confiar, se a História parou e o tempo voltou?

Parar o tempo. Voltar no tempo. Dois desejos com frequência associados à felicidade acabaram sendo realizados pela covid-19 — mas como tragédia.

O ser humano sonhou errado? Se confundiu? Talvez. A humanidade é ambígua em sua relação com o tempo. Na prática, vive o presente. Na fantasia, adora o passado. De verdade, só pensa em antecipar o futuro. Era assim. Agora, tudo pode mudar.

Como um hacker, o confinamento associado à pandemia desconfigurou o psiquismo humano. A partir do ano de 2020, a humanidade reinicia sua relação com esse deus chamado tempo.

Foi rápido demais. Era sabido que o tempo fluía a despeito dos caprichos da humanidade. Mas se imaginava que fosse sempre para a frente, na direção do futuro. Não foi. Veio o passado. Ou a nítida sensação de que voltamos ao passado.

Até há poucos meses, por exemplo, eu desconfiava da dramaticidade dos relatos do meu avô sobre a gripe espanhola quando se referia ao terrível odor exalado pelos caminhões abertos que iam pelas ruas, de casa em casa, recolhendo e amontoando os corpos mortos ainda sem um destino final. Hoje, somos todos o epicentro desta realidade, 100 anos depois.

Receber em casa os mesmos fantasmas que assombraram nossos antepassados em uma outra tragédia de saúde pública aflige, traumatiza e expõe nossos conflitos sobre a relação com o tempo. Embora os fantasmas nos obriguem a viajar emocionalmente para o passado, o que levamos na mala, bem protegido, é o desejo de antecipar o futuro.

É sobretudo no mundo digital que a urgência em alcançar o futuro se manifesta. A paixão pela velocidade virtual inebria, vicia e concretiza a obstinação da humanidade em prematurar o tempo. Confinados, ficamos ainda mais ávidos por experienciar processos que fluem com rapidez, como quando consumimos online. E talvez resida justamente nessa contradição, expressa na convergência entre continuar correndo nas redes virtuais, ainda que imobilizado em casa, um jeito de não enlouquecer.

Controlar o tempo não é um sonho inócuo. Aponta para a determinação da espécie humana em estar no controle das vidas, de todas as vidas, incluindo a vida das outras espécies que habitam o planeta, também para além da vida, na governança do legado de quem já faleceu.

Na ficção científica, não costuma dar certo. Na vida real, também não. Nos filmes, o final feliz só vem porque sempre surgem heróis e heroínas moralistas para resolver tudo. Mas isso está difícil no cotidiano. Haja saúde mental.

Não há previsão de como a humanidade irá se relacionar com o tempo após esse rewinder que drasticamente conectou passado e presente e como se não bastasse estragou o futuro imediato que parecia tão promissor. Em qual matemática a humanidade poderá confiar, se a História parou e o tempo voltou?

Cem anos não serão mais 100 anos. Podem ser bem mais ou bem menos. Busca-se desesperadamente um algoritmo novo. Evoluído o suficiente para calcular a distância temporal que, agora se sabe, é mutante, entre a pandemia da gripe espanhola e a da covid-19.