Revista Senac: Informação acessível também é linha de frente

Versão acessível da entrevista de Claudia Werneck na Revista SENAC (a partir da página 20)

Edição#5 MAI-AGO 2025 ISSN 2965-9965

Editoria: Papo inspirador

Título: Informação acessível também é linha de frente

Autora da entrevista: Ana Bittencourt Lima

Aspas de Claudia:

“Não existe democracia sem participação, e não existe participação sem a oferta cotidiana, também pela mídia, de comunicação acessível”

Especialista em direitos huma nos, discriminação e diversi dade, a jornalista e escritora Claudia Werneck é pioneira na disseminação dos conceitos de so ciedade inclusiva e comunicação acessível na América Latina. Seu 15º livro, Tia Zilda – histórias de inclusão é a primeira publicação brasileira com nove formatos acessíveis. No evento de lançamento, ela comemorou o resultado da campanha liderada pela Escola de Gente – Comunicação em Inclusão (organização que fundou em 2002): que culminou na aprovação do projeto de lei que instituiu o Dia Municipal da Leitura Acessível no Rio de Janeiro, em 18 de abril. 

Você foi a primeira brasileira a receber o título de “Jornalista Amiga da Criança” pelo Unicef. O que a inspirou?

Claudia Werneck – Eu fui uma das primeiras a receber esse título, na verdade, do qual muito me orgulho. Fui indicada pela Andi – Comunicação e Direitos, organização muito atuante na área dos direitos da infância. Minha recomendação veio pelo fato de eu sempre praticar interseccionalidade entre o tema in fância e inclusão, sem restrições e às últimas consequências, ou seja, de forma incondicional. Se uma criança existe, ela é um público beneficiário de inclusão. Meu interesse  pela infância vem da minha experiência como repórter, redatora e, depois, chefe de reportagem de 1981 até 1993. E, até hoje, escrevo muito sobre a infância, sob vários enfoques. Acredito, por exemplo, que a infância é necessariamente um tema de diversidade, por sua vulnerabilidade. 

Seus livros são acessíveis e foram recomendados por Unicef e Unesco. O que significou esse reconhecimento?

C.W – No ano de 2000, me tornei a única escritora brasileira recomendada oficialmente pela Unesco e pelo Unicef, uma super-honra para mim. Meus livros, todos editados pela WVA Editora, alguns em parceria com a Escola de Gente, sempre primaram pelos formatos acessíveis. A WVA Editora criou, com apoio do Ministério da Cultura, da Unesco e de empresas, a campanha de leitura acessível “Todas as pessoas têm direito a conhecer todas as histórias”, em 2011, quando editou o livro Sonhos do dia, de minha autoria. Esse foi o primeiro no Brasil com oito formatos acessíveis. Em 2016, a campanha e o livro foram premiados na sede da ONU em Viena, Áustria, como um dos projetos mais inovadores do mundo na área de inclusão e acessibilidade. 

Quais os desafios para investir em mais publicações assim?

C.W – É preciso querer fazer e aprender a fazer orçamentos de não discriminação para livros. O que temos hoje são orçamentos de dis criminação. Pela Constituição brasileira e pela Lei Brasileira de Inclusão, é inadmissível que livros sejam publicados apenas em tinta, mas é o que ainda acontece. Infelizmente, ainda se acredita que, quando uma pessoa, por ser cega, analfabeta ou não conseguir, por alguma razão, segurar um livro para lê-lo, só ela é prejudicada. Não, sempre que alguém não tem acesso a conteúdos que as demais pessoas na mesma situação têm, todo o sistema comunicacional fica prejudicado, porque somos um indivisível sistema, interligado. Sonhos do Dia e o livro Tia Zilda – histórias de inclusão, que acabo de lançar, são exemplares no que se refere à acessibilidade. O primeiro, para crianças; o segundo, para quem é uma pessoa adulta. E são formatos diferentes. Além disso, os meus livros estão disponíveis no aplicativo VEM CA, da Escola de Gente, em diferentes formatos, gratuitamente.   

Conheça mais sobre a Escola de gente: escoladegente.org.br 

Qual o conceito de sociedade inclusiva e quais os desafios para o Brasil chegar lá?

C.W – O conceito de sociedade inclusiva foi disposto pela ONU por meio da Resolução 45/91, de 1990, e propõe que as sociedades passem da fase de conscientização para a de ação, garantindo o direito que toda pessoa tem de contribuir para o bem comum, mesmo que só consiga piscar um olho. E eu acrescento: daí a fundamental importância da comunicação  acessível e, preferencialmente, inclusiva também. Os desafios do Brasil passam por ter um Congresso realmente disposto a fazer isso acontecer e um Executivo igualmente ávido por criar e executar políticas públicas inclusivas – com recursos financeiros disponibilizados, claro, para que as políticas saiam do papel. Passam também por uma sociedade que entenda que toda pessoa será beneficiada com uma sociedade inclusiva, mesmo quem for considerada a mais inteligente ou rica, isto por que a sociedade inclusiva não é para quem é minoria clássica, como pessoas com deficiência, mas também para quem esteja em minoria por alguma razão; e estar em minoria acontece com todas as pessoas no decorrer do dia, da vida, no ambiente de trabalho, no ônibus, no metrô, em festas, em diversas situações.

Acredita que o mercado de trabalho tende a abrir mais espaço para profissionais que se formam a partir de uma educação inclusiva? 

C.W – Claro! Em 2011, criamos um projeto chamado Agentes de Promoção da Acessibilidade, reunindo jovens com e sem deficiência, moradores de áreas empobrecidas, para cursos de 45 horas sobre inclusão e acessibilidade, ensinando a galera a tomar decisões inclusivas diante de dilemas novos e antigos. Todas as aulas tinham libras, legendas e audiodescrição, de modo que essa juventude pudesse se comunicar entre si, o que para algumas pessoas nunca havia acontecido. O projeto foi premiado em 2017 na sede da ONU em Viena, na Áustria, e seu principal objetivo era justamente inserir informações sobre educação inclusiva e acessibilidade nos currículos dessa juventude, para que, com isso, aumentam a sua empregabilidade, graças a conteúdos que são raros, não apenas para quem vive em regiões periféricas, mas para a juventude das classes mais favorecidas também. O Ministério do Trabalho foi o principal parceiro do projeto, também com aporte de recursos.

Como surgiu a Escola de Gente – Comunicação em Inclusão? 

C.W – A incubadora da Escola de Gente foi a WVA Editora. Meu marido e eu realizávamos muitos projetos apoiados financeiramente por ela, desde 1992, como o projeto “Muito prazer, eu existo”, título do meu primeiro livro. Em 2000, a organização Save the Children, da Suécia, me procurou e perguntou o que eu achava mais urgente de se fazer no Brasil. Eu disse: reunir adolescentes com e sem deficiência e lhes dar formação em inclusão para que se percebam como parte de uma mesma geração. E assim nasceu o projeto “Quem cabe no seu TODOS” – título de um livro que eu havia lançado em 1999, e a metodologia das oficinas inclusivas, hoje espalhadas pelo mundo. Corri o Brasil inteiro e atuei, presencialmente, com mais de 2 mil adolescentes com e sem deficiência. Do sucesso desse projeto, nasceu a Escola de Gente.

Aspas de Claudia:

Sempre que alguém não tem acesso a conteúdos que as demais pessoas na mesma situação têm, todo o sistema comunicacional fica prejudicado

Quais os impactos de uma comunicação mais acessível em nosso cotidiano? 

C.W – Impacta todas as percepções e decisões relacionadas à participação e à segurança, por exemplo. Na pandemia, pessoas com deficiência viveram a maior exclusão de suas vidas por conta da falta de comunicação acessível, que nem a OMS oferecia. Como, segundo a ONU, 80% da população com deficiência do mundo vive em áreas empobrecidas dos países em desenvolvimento, locais onde há baixa conectividade, sentiram-se ainda mais inseguras porque, além da baixa conectividade, havia também a impossibilidade de entender o que os gráficos e as mensagens escritas e lidas sobre a pandemia di ziam. Passamos também a defender o lema “Informação acessível também é linha de frente” e o slogan “A Escola de Gente trabalha para que o maior legado da pandemia seja uma internet planetária gratuita e plenamente acessível”. Não existe democracia sem participação, e não existe participação sem a oferta cotidiana, também pela mídia, de comunicação acessível.

A Escola de Gente promoveu, pela primeira vez no Brasil, lives totalmente acessíveis. Como sensibilizar os demais canais de comunicação para seguir nessa trilha?

C.W – Sim, em março de 2020 realizamos a primeira live plenamente acessível da internet brasileira, com libras, legenda em tempo real, audiodescrição e linguagem simples, e o tema foi saúde mental, sem que soubéssemos o que ainda viria. Isso só foi possível graças à solução integrada que criamos para fazer lives plenamente acessíveis e que foi considerada uma das 400 Melhores Práticas do Mundo pelo Departamento para Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (Undesa). Ela é chamada de hiperconexão inclusiva. Sobre como sensibilizar os canais de comunicação? Tento de tudo, ser mais flexível ou mais radical, expor ao máximo nossas práticas. A principal diretriz da Escola de Gente é a coerência entre discurso e prática. Seguiremos criando novas estratégias e sendo a referência nacional e internacional que somos em comunicação inclusiva e acessível. 

Qual o papel da mídia no combate a todas as formas de preconceito? 

C.W – Os meios de comunicação têm papel fundamental porque atingem milhões de pessoas ao mesmo tempo. Jornalistas e, hoje, influencers são o resultado, como outras categorias profissionais, de uma formação inadequada dada pelas escolas e pelas famílias que lhes ensinam a ter uma percepção reduzida do conjunto humanidade. Todas as pessoas vivem nessa espécie de delírio coletivo, entendendo que alguns grupos, como o de pessoas com deficiência, são apenas detalhes da natureza, e não parte intrínseca dela. Sem elas, o conjunto da humanidade inexiste.

E as novas tecnologias, como a inteligência artificial, podem ser aliadas na conquista de uma sociedade mais plural? 

C.W – Sem dúvida, tecnologias como a IA representam um grande avanço e constituem ótimas ferramentas de apoio para tornar a sociedade mais inclusiva. No entanto, todas foram criadas pelos seres humanos e trazem imperfeições. Por isto, apesar de investirmos mais nessas novas ferramentas, continuamos a acreditar que, se não houver por trás delas um ser humano com o pensamento e uma atitude verdadeiramente inclusiva, que saiba quando, onde e como utilizá-las, elas serão sempre insuficientes para o tamanho do desafio que enfrentamos.

Como estimular as pessoas a se indignarem diante do preconceito e da exclusão?

C.W – Quem vai dizer a uma pessoa que ela é preconceituosa e que discrimina pessoas com deficiência? Este é um diagnóstico que ela não sabe fazer sozinha. E, ainda que saiba, quem vai ensiná-la a não discriminar? O preconceito é uma questão pessoal, e não acaba, mesmo com informação, porque é construído na infância, geralmente pela escola e pela família, apenas se acomoda, se disfarça, se aquieta, mas é preciso controlá-lo o tempo todo. Já a discriminação acontece quando se tira direitos, e garantir direitos é algo possível de se aprender a fazer, mesmo com preconceito. Por isso me dedico a provocar pessoas em geral a se perceberem como agentes e alvos de discriminação. A Escola de Gente criou várias metodologias nesta direção.