A violência tem berço. E nunca está sob controle

Card retangular horizontal traz sobre superfície marrom múltiplos cartazetes coloridos sobrepostos, com setas pretas desenhadas em seu centro e apontadas nas mais diversas direções.
Diariamente os adultos praticam alguns tipos de violência e as crianças aprendem com isso. (Foto: Shutterstock)

Texto publicado originalmente na Revista Pais & Filhos.

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18/04/2023 - Por Claudia Werneck

Você dá colo e aconchego para violência (sem sangue) na frente das crianças? E, ao mesmo tempo, está perplexo com os ataques a creches e escolas (com sangue) no Brasil? Saiba que não está sozinho na sua incoerência. Aprendemos a ser incoerentes desde cedo. Já na infância somos testemunhas do quanto as pessoas adultas lidam assustadoramente bem com a contradição de serem, ao mesmo tempo, agentes e vítimas de exclusões, numa dinâmica sem fim.

A exclusão é praticada pelas famílias e nas escolas de várias formas e a razão nem importa muito, isso porque uma vez que o intelecto já sabe segregar, qualquer hora é hora. Aos poucos, excluir vira um hábito. A violência se manifesta por gestos, decisões e palavras, e vira até um tipo de jogo bem aceito. O ímpeto de "desligar" alguém vem como um impulso incontrolável e no automático, com o passar dos anos. O pretexto ou fato gerador não importa. Pode ser o temperamento, a aparência, o jeito de falar ou não falar, de ouvir ou não ouvir, de andar ou não andar, o gênero, orientação sexual, a raça, o gosto por alguma brincadeira, a falta de agilidade motora, o dom pra música ou para esporte, o time de futebol, a calma ou a agitação, o endereço, a religião, a linguagem, o sotaque, a roupa, o sapato, o cabelo, uma intolerância alimentar. Há sempre um sentido pronto para justificar a exclusão - por parte de quem a pratica…

Qualificar pessoas como sendo "diferentes" ou "especiais" é um exemplo dessa prática. Promove o falso aprendizado de que somos muito iguais e a diferença se localiza apenas em alguns seres humanos, como aqueles que nascem com deficiência. Esse modo arrogante de se perceber as diferenças humanas como um detalhe, ou um equívoco da natureza, e não parte intrínseca dela, vai, lentamente, validando pequenas agressões – ainda que sejam sem sangue.

Em casa, a exclusão costuma vir em tom aparentemente mais leve porque, afinal, as famílias por princípio amam sua prole e seus descendentes. Acontece que o mundo adulto sabe como proteger, cuidar e discriminar – ao mesmo tempo.

Pode ser um comentário, em tom de brincadeira, de que se determinada criança continuar engordando não vai mais passar pela porta das casas da vizinhança. Ou a decisão de que aquele adolescente é muito tímido e se participar de um evento qualquer, com algum destaque, na festa de fim de ano da escola pode ficar envergonhado, na hora, e estragar tudo. Ou uma escola que anuncia em voz alta as notas de prova da maior para a menor. Ou que tem turmas inspiradas nos “melhores” – e nos “piores” estudantes.

Somos experts em tirar alguém da nossa vida sem alguém perceber. Discriminar pessoas em função de suas diferenças e desigualdades de qualquer natureza talvez seja, infelizmente, a primeira lição ensinada pelas famílias às crianças com o apoio da escola – e vice-versa.

Muitas das pessoas que hoje praticam a violência que tanto nos assusta viveram histórias pessoais de alguma exclusão, como vítimas ou algozes. Como educar sem naturalizar qualquer ato de exclusão? Ainda que pouco explícito e inconsciente, o desejo de segregar nos fortalece para outras violências, como para outros tipos mais explícitos de extermínio, de algum tipo de extermínio – já com sangue. E, novamente, qualquer razão serve.

Acreditamos que a educação de nossas crianças está sob controle. Mas não, a violência nunca está sob controle. Ainda assim acredito que seja um caminho com volta. Nessa direção, tenhamos mais cuidado, por favor. A eliminação por meio da morte é apenas o “laço de fita” que, tenebrosamente, embrulha para “presente” experiências de exclusão sentidas e/ou praticadas desde o início de nossas vidas.