É a violência que te leva? E para onde?

A imagem mostra um quadro de recados feito com rolha, que tem diversos post-its fixados por tachinhas. Os post-its e as tachinhas são coloridos, e as cores predominantes são amarelo, verde, azul, vermelho e roxo. Cada post-it tem uma seta preta desenhada, mas elas têm formatos diferentes e apontam para diversas direções.
Educar com afeto e respeito é o caminho (Foto: Shutterstock)

Texto publicado originalmente na Revista Pais & Filhos.

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Janeiro de 2022 - Por Claudia Werneck

“Apanhei muito na infância e daí?”. “Que mal fazem umas palmadas na hora certa?”. Estes são comentários comuns entre as pessoas que te cercam? E você os considera como: a) frases inócuas; b) pensamentos com os quais não concorda, mas releva porque foram ditos sem pensar; ou c) modos preocupantes de alguém se referir à responsabilidade de criar uma criança?   

Há no mundo adulto uma violência eternamente à espreita e pronta para se manifestar diante de qualquer corpo que nos pareça inferior, como o de crianças. É uma prática nociva e naturalizada que funciona como um fio condutor que conecta sucessivas gerações de crianças à mesma carga elétrica e dolorosa.  

O tema da violência na infância foi abordado pela revista Gama em conversa com a psicanalista Thais Basile. Para romper este modelo secular violento de se educar crianças e adolescentes, Basile recomenda que o mundo adulto revisite sua infância e saia do modo automático de agir diante de conflitos com as novas gerações. Explica que na educação tradicional a raiva e a agressividade se misturam porque a noção de autoridade se mantém contaminada pelo autoritarismo. Ressalta, entretanto, que a raiva não precisa se transformar em violência. Segundo a psicanalista, continuamos a acreditar que quanto mais fizermos a criança se sentir mal - e de algum modo culpada - mais ela vai querer ser boa, o que não acontece.  

Minha mãe e meu pai nunca me agrediram fisicamente. Mas por algumas falas, gestos ou ações já me levaram à nocaute emocional. Há uma cena que me doeu muito. E em nada poderia ser descrita como violenta, em princípio. Eu tinha uns seis anos e estava brincando sentada no chão enquanto minha mãe arrumava suas gavetas. Olhei de repente e vi que entre o que ela havia separado para a lixeira estava um desenho que eu havia feito pra ela com muito, mas muito capricho. 

Até hoje me lembro desse desenho com detalhes. Era o de uma casa. Talvez ele tivesse se misturado a outros papéis sem que ela visse e daí tenha tido o lixo como destino. Mas por que eu não me manifestei na hora? Poderia ter impedido a minha mãe de jogar fora o desenho. Eu não agi porque estava imobilizada, tentando entender como alguém que me dava tanto afeto podia também me bater, ainda que metaforicamente.  

Certamente magoei meu filho e minha filha inúmeras vezes. Nem sempre pedi desculpas. De vez em quando, relembramos algumas dessas cenas. Há aquelas que estão apenas na memória dele ou dela, algumas na memória de ambos, outras que estão na memória de todo mundo, ou apenas na minha. Nesses momentos, eu sofro. Sinto muito por coisas que fiz como mãe e não gostei; sinto muito pela minha própria criança interna ferida. Depois conecto tudo, organizando possíveis relações de causa e efeito, que nem sempre encontro. 

Grito dói. Ameaça dói. Crítica dói. Culpa dói. Medo dói. Manipulação dói. Quando se chega à agressão física, muito mal já foi feito para a criança. Ainda que exista amor? Ainda que exista amor.