Que tal deixar as crianças brincarem em paz?

Sobre uma mesa de tampo claro, braços de três crianças aparecem estendidos tendo nas mãos espalmadas diversas criações em massinha colorida de moldar. Os braços aparecem vestindo mangas compridas também em diversas cores. Sobre a mesa, há vários pedaços de massinha espalhados, junto de um molde.
Brincar envolve experimentar e é necessário dar liberdade para as crianças fazerem isso. (Foto: Getty Images)

Texto publicado originalmente na Revista Pais & Filhos.

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15/03/2023 - Por Claudia Werneck

Somos, muitas vezes, pessoas insensíveis, arrogantes e autoritárias diante da infância. Por quê? Talvez por conta daquela antiga crença de que corpos pequenos têm menos direitos do que corpos grandes. Essa inversão de valores se manifesta no modo como o mundo adulto lida com o brincar, principalmente da primeira infância. Buscamos um objetivo adulto no brincar infantil. Não há.

Sozinha ou com outras crianças, o brincar surge sempre delas; e, para esse banquete de prazer, às vezes somos convidadas; outras vezes, não. Ao aceitarmos o convite para participar daquele brincar, sejamos pessoas bem educadas: nada de mudar o cardápio de um banquete já em andamento. Para a criança, a mensagem que fica é clara. O jeito dela brincar está sendo rejeitado ou, no mínimo, criticado. Daí, a infância costuma agir de dois modos: ou aceita a imposição do mundo adulto e é considerada uma criança colaborativa e dócil; ou reclama, não aceita as sugestões e até interrompe a brincadeira. De todo modo, o pedido da criança é: “Deixa eu brincar do meu jeito?”.

Pessoas adultas acham lindo, comovente e confortável observar uma criança brincando sozinha – mas logo se coçam todas por dentro. Como se estivessem sentadas num formigueiro, vem o ímpeto de transformar todo aquele prazer num aprendizado qualquer. Querem intervir de algum modo. O carrinho tem as rodas viradas para cima e o sol está sendo pintado de azul. Quem aguenta assistir a uma cena dessas sem ensinar que o carrinho deve ficar com as rodas pra baixo e que o sol não é azul?

A criança pequena está ali, deliciando-se com o seu jeito próprio de se divertir, mexendo aleatoriamente nas teclas do piano e achando sua musicalidade linda; ou criando novas regras para as cartas de um jogo da memória, ignorando, portanto, todas as orientações tradicionais de como usá-las. Seu brincar está perfeito, porque todo brincar infantil é perfeito, ainda que para nós não tenha qualquer graça ou sentido.

Diante da placidez da cena do brincar da primeira infância, o que sentimos? E se formos convidadas a entrar neste brincar, aceitaremos seguir as regras da criança? Ou apenas fingiremos aceitá-las para logo lhe ensinar o “correto”? Por que brincar sempre parece pouco? De onde vem a urgência adulta em invadir aquele momento para lhe agregar o que seria um suposto valor?

A incidência do julgamento adulto é tão ativa em relação à primeira infância que quando se invade um brincar para forçar um aprendizado e a criança o aceita, vem um sentimento de conquista, de reino dominado. Mas, ao contrário, se a “lição” não dá certo, há uma tendência natural de se avaliar aquela criança. Birrenta, desinteressada ou com algum transtorno no seu desenvolvimento?

Encontrei por aí a expressão “brincar funcional”. A ideia de comentá-la neste artigo veio de uma conversa com Alice Melo, profissional que atua na Escola de Gente, ONG que criei há 21 anos e que trabalha com direitos humanos e inclusão. Alice me alertou para o quanto crianças com deficiência têm sido muito prejudicadas no seu ato de brincar. Para a infância com TEA (Transtorno do Espectro Autista), o brincar deve ser sempre o “brincar funcional”, porque, segundo especialistas, na internet, essas crianças não sabem brincar sozinhas, precisam ser ensinadas a brincar.

Fiquei intrigada com essas informações. Como alguém que já é grande vai ensinar alguém pequeno a brincar? Aqui me refiro ao brincar original que perdemos muito cedo de nossas vidas. Certamente, algo dele permanece na criança que vive em nós até a velhice. E talvez seja justamente esse brincar puro vivenciado na primeira infância o alimento nosso de cada dia, até a morte.

Acredito que temos saudade desse brincar autônomo e prazeroso de quando tínhamos 2, 3, 4 anos, e que nos protegia do que intuitivamente sabíamos que viria: o aprendizado incessante e arriscado do mundo adulto, com suas infinitas regras e imposições.

Talvez o ímpeto de “aprimorar” as brincadeiras infantis seja pura inveja do que já fomos um dia. Hoje, pessoas imersas e submetidas aos insumos de um mundo exógeno, não aceitamos a felicidade do brincar infantil – tão íntimo, primário, tosco, sem sentido e… extremamente divertido.

O brincar da criança não tem pressa, num tempo guiado pela pressa. O brincar da criança não tem objetivo, num mundo guiado por metas e resultados. O brincar da criança nunca é violento, numa sociedade cada vez mais agressiva. O brincar da criança é necessariamente inovador, num mundo que diz gostar de ousar, mas que é apegado a ideias antigas, que renomeia e reajeita de vez em quando.

Que consigamos deixar as crianças brincarem em paz. Cada criança brinca do jeito dela. Um jeito que muda todo dia. E isso não quer dizer que em outras situações da vida não tenham que seguir regras orientadas por pessoas adultas.