Pai, se eu for comunista vou poder usar batom?

 Sobre fundo rosa claro de um card retangular, foto de uma lâmpada branca bem redonda está solitária à esquerda.
Fui criada nesta cadência de diálogos. (Foto: iStock)

Texto publicado originalmente na Revista Pais & Filhos.

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01/01/2023 - Por Claudia Werneck

Desde muito cedo, crianças podem conhecer, sentir e gostar da democracia. É este o
ponto central deste artigo, que conta a minha história.

Meu pai, José Luiz Foresti Werneck da Silva, historiador, era um democrata de
esquerda, sem superlativos ou graduações. Na adolescência, até pensei que me
deixava livre demais. Quando me magoei por conta de um namorado, disse a ele
chorando: “pai, você poderia ter me protegido e me alertado mais”. “Estava deixando
você aprender a tomar decisões”, respondeu.

Ele faleceu em 1995. Seus ensinamentos, absorvidos desde a infância, foram a base da minha resiliência para estar aqui viva, animada e com saúde mental suficiente para
contribuir com os novos tempos que se iniciam hoje, dia 01 de janeiro de 2023.

Eu me recordo que desde pequena ouvia meu pai falar do que desejava para o Brasil:
seus sonhos políticos. Fui criada nesta cadência de diálogos. O que eu mais gostava
era quando ele me pedia desculpas por algo que havia feito sem razão, como brigar
comigo se eu o interrompia quando estava preparando suas aulas, trancado no
escritório. “É que eu quero ficar mais tempo com você”, eu dizia, batendo na porta. Mais cedo ou mais tarde, ele transformava a cena em conversa e me pedia desculpas.

Minha memória guarda até hoje o modo como meu pai chegou em casa após a
passeata dos 100 mil, no Rio, em 1968. Estava emocionado e me explicou que aquele
era um dia histórico porque pela primeira vez tantas pessoas haviam ido pras ruas pedir o fim da ditadura e a volta da democracia. Não me recordo exatamente das palavras que meu pai usou para me explicar o que era democracia, mas foi na medida certa para os meus 11 anos, porque se assim não tivesse sido, esta não seria uma das lembranças mais significativas da minha pré-adolescência.

É esta lembrança que me inspira a escrever este artigo. Meu interesse pelas causas
sociais começou em casa. Meu pai era um ativista político envolvido na resistência à
ditadura, e que com a parceria amorosa da minha mãe, geógrafa, abrigava outros
ativistas em nossa casa quando estavam em risco, às vezes só por uma noite. Dormiam na cama de baixo do quarto do meu irmão, Beto. Segundo ele, acordar com um barbudo na cama de baixo é uma das principais memórias de sua infância.

A família da minha mãe era de direita; e meu pai, de esquerda - detalhe importante para entenderem o que vou contar. Meu avô José, materno, era maravilhoso, afetuoso, cuidadoso e dedicado. Mas comentava que comunistas eram medonhos. Com o meu pai, eu aprendia o contrário. Não que nós dois conversássemos sobre comunismo. Mas esse era um dos seus assuntos preferidos com quem frequentava a nossa casa.

Sobre fundo desfocado de um card retangular, foto em primeiro plano mostra uma mão masculina estendida, apoiando com a palma a mãozinha de uma criança; os braços de ambas aparecem parcialmente.

Um dia minha cabeça deu nó. Sem saber muito o que isso queria dizer, desejava ser
comunista. Estava sensibilizada com os ideais do meu pai. Mas do jeito que meu avô
falava, eu entendia que, se optasse pelo comunismo, teria que vestir aqueles uniformes brutos e sem graça da União Soviética. Não poderia ser vaidosa como a minha mãe - mulher linda nos detalhes ainda hoje, aos 87 anos. Minha mãe, Vera Marina, vivia maquiada e eu adorava imitá-la, mexendo nas suas sombras, cremes, delineadores e todo tipo de enfeites, como brincos e colares, sempre que ela saía para dar aula.

Até que, após alguma hesitação, eu verbalizei meu dilema: “Pai, se eu for comunista,
vou poder usar batom?”.

Com o semblante mais natural do mundo, sem qualquer expressão crítica ou tom de voz que me fizesse sentir culpada por ter perguntado algo incompatível com as conversas da nossa casa, respondeu: “claro, filha”. Meu coração se agigantou. Fiquei agradecida pela forma como meu pai me deixou à vontade e lhe dei um abraço bem forte. Hoje sei que aquela conversa era mais sobre nós dois e o significado de cultivar a liberdade de se expressar do que sobre comunismo.

A convivência familiar entre os dois modos tão diferentes de se pensar o país era
pacífica. Nos finais de semana, no sítio do meu avô José, no Recreio dos Bandeirantes, região ainda deserta do Rio nos anos 1960, meu pai hasteava a bandeira brasileira e cantávamos o hino nacional, puxado pela minha mãe. De um lado, meu pai. Do outro, meu avô. Os dois se davam bem.

Hoje, o Brasil que sonhei com o meu pai voltou a se manifestar. Estou feliz
particularmente pelas crianças da minha família: Clara, Helena, Bento, Malu e Clara
Maria. Elas não serão crianças de ditadura. Se eu vivi de perto tanta dor, felizmente as
minhas memórias infantis também registraram que a democracia vale muito. E crianças devem saber disso bem cedo.