Como pode o bom velhinho discriminar?

Texto publicado originalmente no HuffpostBrasil.

Por: Claudia Werneck.

A oferta de um Papai Noel inacessível para a infância e adolescência com deficiência configura ato criminoso, ainda que imperceptível para a sociedade.

Nem o esplendor do traje vermelho consegue mais esconder a verdade. Em 2019, eventos natalinos, muitas vezes patrocinados com recursos públicos, teimam em oferecer à infância brasileira o mesmo padrão de Natal inacessível, abusivo e discriminador.

Quem comanda a performance segregadora é o próprio Papai Noel. Frequente violador de direitos, está autorizado a sorrir, abraçar, conversar e tirar foto apenas com uma parte das crianças e adolescentes. Em shoppings e outros espaços públicos ou coletivos, quem não consegue lidar com degraus e outras barreiras físicas fica sem acesso ao seu imponente trono dourado.

Há outros modos pelos quais Papai Noel deixa pessoas de fora. Como não oferecer audiodescrição a crianças com baixa visão, cegas e surdocegas. A audiodescrição é medida de acessibilidade na comunicação, assim como “visitar o cenário”, tocando e explorando o que não pode ser visto, incluindo o figurino do Papai Noel. Tudo a partir de um roteiro previamente planejado pelo audiodescritor. A lei prevê ainda a colocação de piso tátil até o trono. E a oferta de Libras e legenda descritiva, para crianças surdas, e de Libras Tátil, para crianças surdocegas. Aí, sim, vai ser bom interagir com este Papai Noel (finalmente) inclusivo.

Talvez não haja Constituição no reino do Papai Noel. Mas, no Brasil, ele precisa cumpri-la. Por isso, vai explicar para as instituições e pessoas que patrocinam suas visitas que, em 2020, só virá sob uma condição: não mais afrontar os direitos da infância brasileira. Vai reler o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e pedir que sua equipe também o faça. Uma exigência profissional condizente com um ofício que lida diretamente com a infância.

Aliás, será que Papai Noel sabe como agir caso ouça de uma criança relato de abuso sexual ou violência de qualquer natureza? Está tudo lá, no ECA, que regulamenta o Artigo 227 da Constituição:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Para 2020, é mesmo fundamental que a equipe do Papai Noel se conecte com os princípios da Constituição, que garantem as necessidades básicas de locomoção e de comunicação a qualquer pessoa. A leitura vai ativar a memória do povo do Papai Noel, lembrando que bebê, criança e adolescente são pessoas e cidadãs desde que nascem. E que cidadania para a primeira infância inclui a oferta de múltiplos direitos.

É possível corrigir o desajuste ético e jurídico que envolve a chegada anual do Papai Noel. Talvez tudo gire em torno da compreensão (falsa) de que lazer e cultura não são direitos fundamentais. Ou que seriam direitos menores, de segunda categoria.

Este pensamento adulterado não veria na ausência de acessibilidade física e comunicacional um ataque à Constituição: Papai Noel, afinal, seria apenas entretenimento infantil. Nada que envolva direitos, mesmo em sentido estrito. Mas essa visão equivocada só agrava o dano. Além de entretenimento ser lazer, e lazer ser direito fundamental, nada que envolva a infância e a adolescência, como o ato de brincar, pode ser desqualificado ou tratado como irrelevante.

O simbolismo do Papai Noel tem sido bastante analisado e criticado por sua insensibilidade à desigualdade social, pela inadequação de suas roupas diante do clima brasileiro de algumas regiões, pela tipificação do seu gênero (sempre masculino), entre tantas perspectivas. No saldo, porém, Papai Noel ainda inspira confiança. E, uma vez que continuará fazendo parte das festas natalinas, precisa, então, apresentar-se com acessibilidade para dois tipos de público: crianças e quem as acompanha.

Pessoas adultas podem ter, elas mesmas, alguma deficiência, baixo letramento ou serem analfabetas. Caso haja algum documento que as famílias assinem autorizando a veiculação de suas imagens no telão do shopping, será que este texto está em linguagem simples? Com suporte de QR Code? Ou as pessoas assinam sem saber?

Vai ser preciso rever regulamentação, equipamento de segurança, cenário, figurino, música, sinalizações no chão e no alto. Papai Noel tem que proporcionar acesso equitativo para toda condição humana, de qualquer idade, que por lá apareça. Embora a sociedade tenha naturalizado isso como inevitável ou até correto, não é conveniente que mães e pais em cadeira de rodas e impedidos por barreiras físicas de acompanhar seu filho ou filha, as entreguem para que alguém desconhecido possa carregá-las até o Papai Noel. Do mesmo modo, a audiodescrição oferecida para acompanhantes permite que as pessoas avaliem o quanto aquele Papai Noel é adequado para ter contato com a criança sob seus cuidados.

Essas informações e percepções, além de terem base jurídica no Estatuto da Criança e do Adolescente, estão amparadas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada no Brasil por dois decretos. Um legislativo, em 2008; e outro do Executivo, em 2009. Este foi o primeiro tratado de direitos humanos a ter valor de norma constitucional formalmente reconhecido no Brasil.

A oferta de um Papai Noel inacessível para a infância e adolescência com deficiência configura ato criminoso, ainda que imperceptível para a sociedade. Mas estamos amadurecendo. Para o Natal de 2020, é possível que o repúdio à negação de direitos relacionados à dignidade humana esteja no auge. Papai Noel fake, dando uma de bonzinho enquanto exclui crianças, nunca mais.