Artigo de Claudia Werneck é publicado na Veja Rio

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Artigo de Claudia Werneck publicado na coluna Lu Lacerda, da Veja Rio, em 14 de agosto de 2025.
Descrição da imagem: Foto de Claudia sorridente, segurando o seu livro "Tia Zilda - Histórias de inclusão". Ela é uma mulher de pele branca, tem cabelos curtos e grisalhos, usa uma franja em topete e está de óculos.
Opinião, por Claudia Werneck (escritora): “Amar e discriminar. Combina?”
Quando palavras e gestos amorosos acabam reforçando barreiras: uma reflexão sobre inclusão e direitos
Em todas as gerações, o fato se repete na infância: crianças que, por conta de algum comentário de pessoas adultas que as cercam e as amam, sentem-se, por causa dessa fala, de algum modo excluídas. E esse sentimento de exclusão e rejeição pode ser um tema de toda a vida, dali pra frente, mesmo que disfarçado e inconsciente.
Aconteceu comigo. É o que relato no livro “Tia Zilda. Histórias de Inclusão”, que acabo de lançar. Um simples, aparentemente inócuo e até amoroso comentário dela me fragmentou por inteira quando eu tinha por volta de 7 anos e me fez sentir, pela primeira vez, sem lugar no mundo. Em busca dessa sensação de pertencimento, tornei-me a ativista em direitos humanos que sou hoje. A propósito — e por isso — esclareço que o conceito de sociedade inclusiva não se destina apenas a grupos historicamente excluídos, como pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas. Isso porque, sempre que estivermos em situação de minoria, corremos o risco de nos sentirmos rejeitados, e mais: de nossos direitos serem negados por qualquer razão — até por amor.
Ah, o amor! Por que acreditamos que ele resolve tudo? As famílias amam e discriminam, tudo ao mesmo tempo. Se palavras carinhosas, olhares úmidos, arrepios de emoção e gestos sinceros de afeto pudessem diminuir a discriminação enfrentada por pessoas com deficiência, o mundo já seria outro. Os gestos de extremo e sincero afeto têm sido usados para disfarçar o nosso mais profundo e oculto desejo de excluir alguém que simplesmente nos pareça muito diferente de nós. O próximo passo é se sentir no direito de escolher quais direitos essa pessoa, tão diferente, deve ter. Por exemplo: uma uma pessoa com síndrome de Down tem o direito de morar sozinha, de casar, de trabalhar? Sim, tem — por mais distante que essa realidade possa nos parecer. Isso vai depender, é lógico, de sua formação, competência e desejo, de fatores sociais e econômicos, mas o direito está garantido.
A palavra “especial” é um exemplo de nossas dificuldades em assumir o que realmente sentimos. Nada contra uma família considerar sua prole especial, com deficiência ou não. Mas, como uso cotidiano, essa palavra é utilizada pela sociedade para se referir a quem tem deficiência. O problema é que, se são tão especiais, saem do contexto da garantia de direitos, porque direitos valem para pessoas comuns, e não “especiais”.
O que nos impede de ser inclusivos, na prática, é a discriminação — e ela se dá não apenas quando tiramos direitos, mas também quando transformamos direitos comuns em “direitos especiais”, impedindo a vida independente e promovendo uma eterna tutela. A superproteção é um bom exemplo desse processo tão danoso.
Não apenas as famílias discriminam: também as organizações nacionais e internacionais, governos, a mídia e a sociedade, por conta do pensamento sombrio das pessoas que não sabem o que discriminar. Não discriminar é o primeiro passo para quem deseja praticar inclusão. E não discriminar depende, muito, do quanto de recursos de acessibilidade comunicacional estão sendo oferecidos para quem precisa deles, e são, além das pessoas com deficiência, crianças, pessoas idosas, analfabetas, com baixo letramento, muito medicadas por conta de depressão, entre outros grupos impedidos de participar dignamente na vida em sociedade por barreiras de comunicação.
Pessoas cegas, por exemplo, não podem comprar livros para ler porque as editoras não os produzem em formatos digitais. E até organizações que atuam na área da deficiência ignoram a acessibilidade plena em seus projetos e ações. O correto é sempre oferecer, simultaneamente, no virtual e no presencial: Libras, legenda em tempo real (para quem é surdo e não usa Libras), audiodescrição ao vivo (e não autodescrição) e linguagem simples. Sem a oferta de acessibilidade plena, descumprem-se, despudoradamente, a Lei Brasileira de Inclusão e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, sendo que esta última, no Brasil, tem valor constitucional.
Segundo a ONU, mais de 80% das pessoas com deficiência vivem na pobreza nos países em desenvolvimento; no Brasil, em sua maioria, são negras. De modo que oferecer acessibilidade plena é também uma forma de buscar soluções para a desigualdade social e o racismo, além de combater a discriminação.
Pessoas com deficiência são a maior minoria do planeta — mais de um bilhão de pessoas que precisam se comunicar e contribuir com seus saberes para o bem comum. Por isso, o livro foi lançado em nove formatos acessíveis — fato inédito no Brasil. E pode ser pedido gratuitamente pelo e-mail @escoladegente.org.br. Acessibilidade financeira, claro!
Claudia Werneck é escritora recomendada pela UNESCO e UNICEF, idealizadora da Escola de Gente, com mais de 100 premiações e reconhecimentos pelo mundo. Ela tem 14 livros publicados (WVA Editora) em em português, inglês e espanhol para crianças e pessoas adultas sobre direitos humanos, inclusão e acessibilidade, com mais de 500 mil livros vendidos. O título “Sociedade Inclusiva. Quem cabe no seu TODOS?” é referência internacional. “Tia Zilda” está nos formatos impresso, em audiolivro, audiolivro com audiodescrição, PDF com audiodescrição, arquivo TXT com audiodescrição, arquivo DOC audiodescrição, vídeo com Libras e legendas, vídeo em linguagem simples com todo o conteúdo do livro, e-book acessível com descrição de imagens e gráficos. Além disso, a capa tem um QR Code em relevo, oferecendo acesso rápido aos formatos acessíveis, com uso de wire-o para facilitar o manuseio da obra para pessoas com dificuldade motora.