Tia Zilda Histórias de Inclusão Claudia Werneck NOTA INTRODUTÓRIA AD: As ilustrações do livro foram elaboradas por Inteligência Artificial. Na capa, a figura assemelha-se à técnica de dobradura, com luz e sombra que dão efeito de volume. Dentro do livro, os desenhos de traços finos e sombreados parecem feitos em grafite. Somente a capa, a fotografia da autora e a relação de seus livros são coloridas. FIM DA AD CAPA AD: A capa cor de areia tem ao centro uma menina com a pele cor de canela e a franja cor de chocolate. Ela tem um volumoso adorno arredondado na cabeça, como um black power feito de folhas em tons de verde e caramelo. Está de olhos fechados, tem nariz e boca pequenos e expressão serena. Os braços estão enlaçados em volta do globo terrestre, com as mãos sobrepostas à frente. O globo tem quase o tamanho do black power, é azul com os continentes brancos. Abaixo, em letras finas marrons, vem escrito Tia Zilda - Histórias de Inclusão. Em verde, com as letras menores, Claudia Werneck. No canto inferior esquerdo, a logo da Escola de Gente e, à direita, a logo da WVA Editora. No topo, à direita, o QR Code. FINAL DA AD VERSO DA CAPA AD: O fundo desta página é na cor areia, com o entorno em verde, mesma cor do nome de Claudia Werneck no alto do texto, em letras pretas. Uma foto de Claudia Werneck ocupa o quarto inferior esquerdo. Ela é branca, de cabelos bem curtos e grisalhos com topete para a esquerda. Dá um largo sorriso de estreitar os olhos, tem dentes alvos e bem alinhados. Usa óculos de grau, modelo gatinho, brincos delicados, duas correntes finas no pescoço e um botton cinza do lado esquerdo. Aparece dos quadris para cima, está sentada com as mãos sobre as pernas. Usa uma bata de algodão, com tingimento orgânico tie die em tons de azul marinho matizado, uma faixa branca na altura do peito e, para baixo, uma faixa vertical marrom e bege nas laterais. Detalhes em preto na gola e na dobra das mangas ¾. Usa aliança na mão esquerda e duas pulseiras de contas redondas. FIM DA AD Claudia Werneck - Defensora incansável do conceito e da prática da inclusão, empreendedora social e ativista em Direitos Humanos, é a única escritora brasileira recomendada oficialmente pela Unesco e pelo Unicef. Fundadora da ONG Escola de Gente em 2002, foi indicada pela ministra da Cultura em 2023 para representar o tema “Acessibilidades Artísticas” na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), órgão cogestor da Lei Rouanet. Com mais de 100 premiações nacionais e internacionais, é jornalista formada pela UFRJ, com especialização em Comunicação e Saúde pela Fiocruz. É autora de 14 livros sobre diversidade publicados em português, espanhol e inglês, com mais de 500 mil exemplares vendidos em vários formatos acessíveis. Claudia é pioneira na disseminação, no Brasil e nos demais países da América Latina, do conceito de sociedade inclusiva, criado pela ONU em 1990. Foto: Joe Winter FOLHA DE ROSTO Tia Zilda Histórias de Inclusão Claudia Werneck 2025 / 1ª Edição AD: Abaixo, logomarcas Escola de Gente e WVA Editora. FIM DA AD PÁG. 2 - APRESENTAÇÃO DA AUTORA “Seres humanos nascem necessariamente incluídos na espécie Homo sapiens. Quando crianças, nos sentimos conectadas ao universo de forma plena, natural, absoluta. Até que um dia percebemos que somos apenas um pontinho no mapa. Essa revelação pode nos fragmentar para sempre… E passamos a buscar por toda a vida a sensação de pertencimento perdida. Quem te fragmentou, ainda que com muito amor? Comigo, foi a tia Zilda, em uma inesquecível manhã de sol.” Claudia Werneck Assim a autora revela por que este livro se chama Tia Zilda - Histórias de Inclusão, uma obra que reúne crônicas e artigos de Claudia como ativista de direitos humanos. PÁG. 3 Direito à acessibilidade Por favor, avise a pessoas cegas, com baixa visão, analfabetas, que precisam ou preferem acessar informação de diferentes modos, que este livro está publicado em nove formatos acessíveis: impresso em tinta, PDF, TXT, DOC, e-book acessível, vídeo com Libras e legenda, audiobook, audiobook com audiodescrição, e vídeo em linguagem simples. O texto impresso em tinta está diagramado com mais espaço entre as linhas, em fonte Arial e em corpo maior. Também como medida de acessibilidade, a encadernação é em wire-o (espiral). Acesse os formatos digitais no QR Code em relevo na capa ou pelo aplicativo VEM CA da Escola de Gente. O formato impresso em tinta pode ser solicitado gratuitamente pelo e-mail escoladegente@escoladegente.org.br. PÁG. 4 - PREFÁCIOS Por uma inclusão verdadeira Fico muito feliz por saber que a obra de Claudia Werneck segue sendo ampliada. Lembro até hoje do impacto que o livro “Ninguém Mais Vai Ser Bonzinho na Sociedade Inclusiva”, escrito pela autora, teve sobre mim, ao mostrar a importância da inclusão social de pessoas com deficiência em todos os espaços e não apenas em lugares segregados. Os relatos contidos no livro foram muito relevantes e serviram de base para minha pesquisa de pós-graduação em Educação Especial, que defendeu a necessidade, relevância e importância da inclusão das pessoas com deficiência na rede de ensino regular, promovendo um espaço acolhedor e inclusivo. Ter o livro como referência em minha dissertação fez toda a diferença na visão sobre o tema e, desde então, sigo acompanhando a trajetória da autora. Claudia escreve de maneira simples e acessível, o que é essencial na elaboração de temas como esse, que precisam sensibilizar a sociedade para sua compreensão e promover a busca por aliados. Lembro até hoje também de um exemplo que ela trouxe, sobre a história de um torcedor de futebol. Esse torcedor, cadeirante, vai ao estádio – e o fato de ir lá parece ser suficiente até que chegue ao local –, onde é isolado do restante do público. Então, mesmo estando dentro do estádio onde estão todas as pessoas, ele não está junto das outras pessoas. O exemplo mostra que, mesmo na tentativa de incluir, ainda existem erros que continuam promovendo a exclusão dessas pessoas. É preciso cuidado para a promoção verdadeira da inclusão de pessoas com deficiência, para que elas se sintam parte, de fato, da nossa sociedade. Exemplos como esse, reais, nos fazem pensar de forma concreta sobre essa realidade, tornando o livro uma importante ferramenta de reflexão e promoção da mudança que queremos. Essa mudança consiste em uma sociedade mais diversa, que valorize as diferentes habilidades, em que as pessoas sejam verdadeiramente respeitadas e admiradas pelo que elas são. Desejo que a obra de Claudia Werneck siga conscientizando as pessoas e gerando mudanças essenciais para todas e todos! Sonia Guajajara Ministra dos Povos Indígenas do Brasil e pós-graduada em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão PÁG. 5 A radicalidade do meio Acompanho a trajetória de Claudia Werneck há mais de 40 anos, desde que fizemos juntas o pré-vestibular para a Escola de Comunicação, curso onde seu pai, o historiador José Luiz Foresti Werneck da Silva, era um dos nossos mais queridos e admirados professores. E a menção ao professor Werneck surge aqui, não apenas como registro de nossas memórias mais antigas, mas, principalmente, porque é notável como os valores éticos do pai se espelham na obra da filha. Obra que compreende tanto os muitos livros que escreveu como o ativismo que tem direcionado sua vida. Curiosamente, na faculdade, quando muitos pertenciam a agremiações partidárias, então ilegais, pois vivíamos o período final da ditadura, Claudia parecia mais empenhada em observar e estudar do que em se embrenhar pelas fileiras da política estudantil. No entanto, poucos de nós se dedicaram, como ela, e com tanta consistência, ao ativismo político no sentido mais amplo de política. Desde seu primeiro livro, “Muito prazer, eu existo”, de 1992, sobre a síndrome de Down, até a criação da Escola de Gente, em 2002, e em todo o trabalho desenvolvido de lá para cá, a luta de Claudia por uma sociedade inclusiva tem sido ininterrupta e incansável. O que é a inclusão, este “exercício sem fim”? Não é uma prática simples, como ela mostra nos artigos reunidos em “Tia Zilda”. Até porque Claudia não se contenta em apresentar soluções fáceis. Escritora de primeira, ela exibe tal liberdade de pensamento que nos leva a ponderar sobre o que nunca havíamos refletido. Por exemplo, que as crianças, em toda a sua vulnerabilidade, podem não se sentir confortáveis com efusivas demonstrações de afeto por parte de pessoas estranhas. Ou que não deveríamos achar normal que um pai ameaçasse seu filho em altos brados, como na cena que presenciou em um aeroporto. As crianças estão entre os seres mais vulneráveis da humanidade. Claudia percebe isso não só pelo lado intelectual, mas porque mantém viva a criança que foi. No ensaio inédito que abre o livro, “Tia Zilda, o Rio e eu”, ela relembra a importância desta tia na sua formação e a revelação ao mesmo tempo amorosa e brutal que abalou seu mundo. Corpos infantis, pessoas com deficiência, principalmente quando vivem na pobreza, povos originários – a luta da autora é pelo reconhecimento e pelos direitos das pessoas todas, em sua diversidade. A ideia de que todas as pessoas têm idêntico valor humano. Que temos, todos, o direito primordial de existir simplesmente por sermos gente. Parece óbvio? Só que não... Claudia flagra o subtexto de várias situações em que uns são depreciados enquanto outros são louvados, como na fala do jornalista que, cobrindo as Olimpíadas, exalta “o melhor da raça humana”. Muitos dos artigos do livro foram publicados durante a pandemia de covid-19. Sua leitura hoje, em 2024, nos faz pensar que rapidamente nos esforçamos por apagar as tristezas do período e, juntamente com elas, o que poderia ter ficado de aprendizado. Uma aprendizagem em termos de uma sociedade mais construtiva, justa e harmônica. Sem buscar apoio em palavras de ordem, os artigos aqui reunidos levam à conscientização como primeiro passo para a mudança. Ativista sem concessões pela inclusão, Claudia nos estimula a refletir para além do lugar-comum e das dicotomias. Inclusão, como ela escreve, “é viver na infinitude do meio”. Sheila Kaplan Doutora em Literatura e jornalista da área cultural, é colaboradora do jornal Valor PÁG. 6 Lembro deles! Tenho um amigo que, volta e meia, na abertura de alguma Olimpíada, me provoca: “e aí, esses atletas são ou não o melhor que a humanidade tem a oferecer?”. Em 2000, ele leu o artigo “Olimpíadas e condições humanas”, publicado no Jornal do Brasil pela escritora Claudia Werneck. Diz ali a autora: Acreditar que na Olimpíada está o melhor da raça humana é acreditar que existe o pior da raça humana. Então, quem seria esse pior? Seria quem não se movimenta na velocidade ou na forma que consideramos como padrão? Será que existe mesmo esse pior? Meu amigo não se esqueceu dessas questões. Nem eu. Aquele artigo, o mais antigo dos textos aqui reunidos, foi escrito por minha mãe. Não é convencional que um filho escreva prefácio para um livro de sua mãe. Mas nem a autora, nem o livro são convencionais. Posso atestar: do mais antigo ao mais recente dos textos, acompanhei a pessoa gerando as ideias e as formulando em palavras. Vi isso ao longo de muitas versões e revisões – de minutas que primeiro chegavam impressas, depois por e-mail, e nos últimos anos por zap. Quase sempre acompanhadas de um “pode ler até amanhã?”. Se havia coisas convencionais naquelas primeiras minutas, não sobreviveram até as versões finais (apesar das minhas bastante convencionais sugestões de edição). Agora, voltando a todos esses textos, descobri que nunca deixaram de habitar minha cabeça. Há duas décadas me tiram da zona de conforto. Me fazem confrontar minhas ideias sobre igualdade e diversidade, mostrando problemas que eu talvez sequer percebesse e me fazendo pensar em como superá-los. Não perderam sua força ou relevância com o tempo. Em “Filhos reais ou virtuais?”, a difícil pergunta-título recebe resposta desafiadora: Sem exceções, todo filho ou filha quando chega é um enigma, que nos encanta e amedronta desvendar. Em “Lembra deles? E delas?”, a autora argumenta que Crianças que não estão na escola deixam de fazer parte da memória afetiva e dos planos das pessoas com quem vai dividir a responsabilidade de construir e dignificar sua nação. Quem está fora da convivência e da imaginação no presente acaba excluído do próprio futuro da comunidade. Assim como no caso das Olimpíadas, os textos não são sobre filhos(as), crianças ou pessoas com deficiência. Tratam de deficiência porque ela nos faz confrontar uma questão geral, ao mesmo tempo existencial e política: o desencontro entre a humanidade que escolhemos imaginar e a humanidade como ela realmente é, na sua infinita diversidade. Nossas leis com frequência são lidas como se protegessem a primeira, mas não a segunda. Desencontro grave, que mina sonhos e viola direitos. Desencontro que, ao longo desses textos, a autora vai escavando atrás das nossas aparentemente mais inofensivas e bem-intencionadas palavras e manifestações. Difícil esquecer de imagens e perguntas tão precisas e poderosas, para questões ainda tão urgentes. Tenho certeza de que você também pensará por muito tempo sobre os textos aqui reunidos. Diego Werneck Arguelhes Professor Associado do Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa, em São Paulo PÁG. 7 Sumário Tia Zilda, o Rio e Eu - Pag 9 Inédito De alma chorada. E lavada - Pag 12 Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2022 Corpos pequenos, nunca inferiores - Pag 15 Publicado no portal HuffPost Brasil em setembro de 2020 Sabia que a faca não é cega? - Pag 18 Publicado no portal ECOA-UOL em dezembro de 2021 Não somos figurinhas! - Pag 20 Publicado na revista Nova Escola em maio de 2004 Afeto ou falta de empatia? - Pag 21 Publicado na revista Pais&Filhos em março de 2021 A liberdade é conectar com o outro: isso se chama inclusão - Pag 22 Publicado no NEXO Jornal em novembro de 2019 Qual o trabalho que você leva para casa? - Pag 24 Publicado no jornal O Globo em junho de 2020 Filhos reais ou virtuais? - Pag 27 Publicado no jornal O Globo em fevereiro de 2001 A tragédia Yanomami à luz da Convenção das Pessoas com Deficiência da ONU - Pag 30 Publicado no portal JOTA em fevereiro de 2023 Quanto custa discriminar? - Pag 32 Publicado no portal ECOA-UOL em novembro de 2020 Muito carinho e poucos direitos - Pag 34 Publicado na revista Pais&Filhos em maio de 2021 Olimpíadas e condições humanas - Pag 36 Publicado no Jornal do Brasil em setembro de 2000 Por que mesmo as crianças vão para a escola? - Pag 38 Publicado na revista Pais&Filhos em junho de 2021 Onde mora a inclusão? - Pag 40 Publicado na revista Pais&Filhos em setembro de 2021 Ucrânia é nome feminino. Clitóris, masculino - Pag 42 Publicado no portal ECOA-UOL em março de 2022 A exclusão (des)naturalizada - Pag 43 Inspirado em artigo publicado no portal ECOA-UOL em abril de 2020, revisto pela autora Infância nas eleições - Pag 46 Publicado no portal ECOA-UOL em junho de 2022 Aspas nunca mais - Pag 49 Publicado no jornal Folha de São Paulo em setembro de 2021 A violência tem berço. E nunca está sob controle - Pag 51 Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2023 Que tal deixar as crianças brincarem em paz? - Pag 52 Publicado na revista Pais&Filhos em março de 2023 Lembra deles? E delas? - Pag 55 Publicado no jornal O Popular, de Goiânia, em janeiro de 2000 A covid-19 reforçou a desigualdade brasileira - Pag 57 Publicado no portal ECOA-UOL em março de 2020 Ainda dá tempo? O interrompido sonho de futuro - Pag 59 Publicado no NEXO Jornal em novembro de 2021 A vida como um eterno webinar - Pag 62 Publicado no portal ECOA-UOL em maio de 2020 Infâncias são indivisíveis - Pag 64 Publicado na revista Pais&Filhos em fevereiro de 2023 O gato comeu sua língua? - Pag 66 Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2021 Agradecimentos - Pag 67 Créditos - Pag 68 Livros da autora - Pag 70 PÁG. 9 - MIOLO Tia Zilda, o Rio e eu AD: Uma menina branca de olhos fechados com um leve sorriso. Seu rosto está envolto por longos cabelos ondulados e esvoaçantes, misturado a algumas folhas. Ela abraça o planeta Terra. FIM DA AD A desconexão doeu. O desespero brotado lá nas vísceras foi adotado em microssegundos pelo cérebro, que adora um novo trauma para conviver com ele a vida inteira – ainda que o único ouvidor dos lamentos seja a mente da própria pessoa. Uma dor causada pela tia, Zilda, que parecia velha, mas muito velha – para a menina. O cenário é um apartamento na rua Canavieiras, no Grajaú, Zona Norte do Rio, em 1963. É o quarto da tia, o sofá-cama da tia; as duas sentam-se lado a lado e de costas para uma janela de madeira verde, escancarada por Zilda para celebrar o azul do céu naquele dia. Zilda senta-se. E pede que a sobrinha se sente mais perto, mais perto mesmo. As pernas das duas bem grudadas. Em seguida, abre sobre as coxas de ambas um enorme livro de capa dura com mapas multicoloridos: era um atlas. A tia está feliz, nota a menina. Zilda procura vagarosamente por uma certa página e para. E, então, aparentemente consciente do impacto da revelação que protagonizaria para a sobrinha, coloca seu dedo indicador já enrugadinho sobre o mapa do mundo e nele mostra um pontinho, a cidade do Rio de Janeiro. E diz, sorridente: moramos aqui. O mundo veio abaixo para a menina. A maldade de Zilda não foi por acaso. A tia, talvez porque nascera em Ponte Nova, em Minas Gerais, lugar sem praia, planejara com amor aquele momento cruel. Filha mais velha de nove irmãos, entre eles o pai da menina, José Luiz, Zilda, solteira, dedicava-se a oferecer a seus quase 20 sobrinhos e sobrinhas conhecimento em todas as áreas. Sensível, educada, psicanalisada (coisa rara na época), culta, sofrida e participativa, colaborava incansavelmente com a educação de quem ia nascendo na família. Foi tia Zilda quem anunciou para a mesma sobrinha, anos mais tarde, que havia chegado a hora de ela usar desodorante, de preferência sem cheiro, aconselhou; foi ela quem propiciou à primeira geração de sobrinhos e sobrinhas conhecer a Europa nas asas da Panair, onde trabalhava (mas a Panair acabou antes de chegar a vez desta sobrinha fazer a sua viagem); foi tia Zilda quem a levou para conhecer o então edifício mais alto da cidade, o Central, na avenida Rio Branco. Católica, foi tia Zilda quem lhe apresentou o Convento de Santo Antônio, no Largo da Carioca, onde antes havia sido um cemitério, no qual a sobrinha entrou e saiu berrando e esperneando, implorando para ir embora agarrada às pernas da tia, furando sua meia nova de nylon e interrompendo a missa, perturbando o padre, em fato até hoje sem explicação. Também foi tia Zilda, quando trabalhava na Embaixada Americana, quem traduziu para o inglês e enviou a carta que essa mesma sobrinha escreveu, aos 11 anos, para os astronautas Armstrong, Collins e Aldrin quando pousaram na Lua, em 1969; foi ainda tia Zilda quem ofereceu e dedicou para a sobrinha o livro Robinson Crusoé, comprado pelas duas em uma Feira de Livros na Praça Tiradentes, um daqueles rituais culturais de domingo que Zilda adorava. O livro Robinson Crusoé pode ser visto ainda hoje na estante da sobrinha, que está viva, e tem mais idade do que a tia quando essa lhe revelou, com estarrecedor cinismo, que naquele imenso mapa do mundo o Rio de Janeiro era apenas um pontinho no mapa. Então, se o Rio era um pontinho, que pedacinho do pontinho era a menina? Um pontinho do pontinho do pontinho? Não, pensava a sobrinha. Tia Zilda errou. Eu sou o próprio universo. Sou todo aquele azul do mapa. E as outras cores também. Aquela criança sofreu e sofreu. A revelação de que a sua cidade era um pontinho se desdobrou em outros pensamentos terríveis. Qual seria então o tamanho, naquele mapa, da Praça Edmundo Rego, perto de sua casa, no Grajaú, na qual brincava em um laguinho sujo cheio de girinos? O Rio de Janeiro com seus lagos de girinos não era o centro do universo e do mundo, de todos os mundos? A menina perdeu até a vontade de sonhar com seu namoradinho da Escola Pública Duque de Caxias, o Ricardo Pacheco. Foi demais para os seus seis anos saber que ela e o Rio e o mundo não eram uma coisa só, fenômeno único e indivisível. A criança não teve mais paz. Como na família ganhara fama de “amadurecida para a idade” e já havia incorporado esse papel, sofreu só. Notou melancólica que sua voz passou a sair mais fraquinha em seus atos de louvor ao Rio, que aconteciam nos finais de semana, quando ia para o sítio da família no Recreio dos Bandeirantes pelo Alto da Boa Vista, na Kombi verde do vovô José e da vovó Marina. Ela e a prima Cristina, com quem brigava muito, de tirar sangue, mas que amava perdidamente, ficavam ansiosas esperando aparecer o primeiro pedacinho de céu e de mar da Barra da Tijuca, logo após uma curva na descida do Alto. E aí cantavam Cidade Maravilhosa para aquela planície limpa de tudo, início dos anos 1960. Nesse tempo, a menina era tão pequena que cabia em pé na Kombi ao lado dos avós – ele, dirigindo; e ela ali, agarrada à avó. Era quando ela se entregava a algo sagrado e divino, que sentia ser bem maior do que seu corpinho frágil: a totalidade de sua devoção ao Rio. Diante daquela linha do horizonte que a seduzia e intrigava, embalada pelo calor da família de classe média que lotava a Kombi verde do avô José, a bichinha, intuitiva e emocionada, explodia seus pulmões asmáticos para elevar aos céus e às terras e aos mares e às matas, plena, seus sentimentos pelo Rio, que simbolizava o universo inteirinho. A Terra – início, meio e fim de todas as belezas e cores que até então conhecia. Assim, enquanto a Kombi descia o Alto e seu irmão menor Beto, adorado Beto, vomitava sem parar pelo excesso de curvas a que era submetido todo fim de semana, a menina se sentia em paz: corpo e espírito acoplados numa respiração uníssona de conexão com o universo. Mas e agora que o Rio não era dela, que o Rio não era ela, e ela também não era o Rio? E como ela seria do Rio se ela nem cabia naquele pontinho do mapa apontado pela tia que – isso ela não entendia – ainda a acompanhava cantando feliz Cidade Maravilhosa na descida do Alto, a caminho do sítio no Recreio dos Bandeirantes, como se nada houvesse acontecido? Ninguém da família notou seu sofrimento. Estavam empolgados, é natural, com sua fase de alfabetização. Nem tia Zilda, tão próxima, percebeu sua desolação ao descobrir em seu pequenino coração o quanto as pessoas adultas podiam ser más e boas ao mesmo tempo. E que as cidades também. Com o tempo e a puberdade aceitou que o Rio e ela não eram uma unidade. E que o universo não dependia de seu corpo e sentimentos para viver. Outros diálogos internos surgiram em sua mente gananciosa por fazer perguntas e entender tudo numa ladainha sem fim. E essa história do mapa ficou tão no passado que nem foi citada nas terapias que fez quando adulta, estava apenas no pranto convulsivo que a surpreendia em tantas sessões. Sua alma iria chorar para sempre a dor de não ser tudo. Só lá pelos seus 50 anos – quando Zilda já havia falecido há décadas – a sobrinha entendeu a estratégia amorosa da tia: ela tinha era o receio de que alguém que a menina amasse menos lhe causasse tanta dor. Sabia que, ao se sentir pela primeira vez desconectada do universo, toda criança sofre muito. Lembrava-se, provavelmente, de como acontecera com ela. Zilda então assumiu para si a missão de revelar à menina que crianças são muito, mas não são tudo. É por isso que a menina – que até hoje busca a conexão perdida – decidiu contar esta história. Seu nome é Claudia. PÁG. 12 De alma chorada. E lavada AD: Uma flor de lótus com 6 pétalas ovais e pontiagudas intercaladas e sobrepostas, tem pistilos aglomerados ao centro. Gotas transparentes gotejam da flor, que é símbolo de pureza e beleza interior. FIM DA AD O ácido sulfínico, gás volátil que sai das cebolas, chega rapidamente aos olhos e provoca uma lágrima reflexa que dispensa interpretações. Há também os discretos líquidos basais – um tipo de lágrima – que existem para lubrificar os olhos. Até aí tudo bem. O que o mundo adulto não tolera são as lágrimas que vêm do choro emocional, transbordando pelos olhos, inchando o rosto e espalhando perplexidade em quem observa a cena. Embora as lágrimas de comoção íntima sejam naturais e bem-vindas como expressão e saúde humanas, “não chora” é uma das frases mais comuns dirigidas à infância. Seres humanos são a única espécie conhecida que produz lágrimas emocionais, diz a ciência. Choramos sem querer ou querendo, por impulsos variados e ambíguos, para alívio de estresse e dores. As lágrimas emocionais são múltiplas até em sua diferenciada composição química: prolactina, manganês, serotonina, cortisol e adrenalina. A origem delas é sempre um enigma. Enigma porque uma mesma pessoa pode chorar por estar comovida, sofrida ou extasiada, tudo ao mesmo tempo, por razões diferentes que nem ela consegue definir pra si. Há estudos sobre as possíveis razões das lágrimas emocionais. A hipótese mais plausível, segundo o oftalmologista espanhol Juan Murube Del Castillo, da Universidade de Alcalá, em Madri, é que o choro tenha surgido antes da linguagem falada, como uma expressão mímica para comunicar dor. “Por que o olho, motivado por uma emoção qualquer, produz uma secreção?”, pergunta o médico pesquisador, que responde: “o choro surgiu quando a humanidade já havia esgotado seus recursos faciais e movimentos musculares como levantar a sobrancelha ou morder os lábios para revelar estados anímicos de curiosidade, surpresa ou medo, entre outros. Precisava escolher uma nova expressão no rosto para dizer ao outro que sentia dor”. Surgiam as lágrimas emocionais. Com inputs diversos, nas lágrimas emocionais há um pouco de tudo – de lembranças a sonhos e planos de futuro. Junte-se ainda algo que acabou de acontecer no presente e que tocou aquela pessoa de modo inexplicável. A partir daí, como num tarô existencial, um sentimento se liga ao outro, que se liga ao outro e em segundos está formada uma rede de dimensões inimagináveis, misturando sensações, alegrias, dores, sustos e muito mais. Talvez seja dessa incerteza sobre o que aquela pessoa sente, a ponto de verter lágrimas, que vem o desconforto para quem a observa. Quando as lágrimas são acompanhadas de soluços, então, quem aguenta? O que fazer com alguém assim ao seu lado? E se for uma criança? Bebês chorando comovem muito na cultura ocidental. Ainda assim, o pranto ou a choradeira estão na lista das expressões emotivas que devem ser evitadas durante a vida. Ao contrário do riso, que está sentado confortavelmente no alto da cadeia alimentar da comunicação humana. Crianças crescem acreditando que o riso é bom. E o choro é mau. Melhor ficar perto de quem ri na escola, do que de quem chora. Mas como se sente uma menina mais introvertida que prefere chorar a falar de algo que a entristece? Ou um adolescente surdo, que se comunica apenas pela Libras, num ambiente onde precisa contar algo que o machuca e não há intérpretes da Língua de sinais brasileira disponíveis ao seu redor? Como expressar sentimentos sem saber, ou poder, falar por qualquer razão? Nas fotos, em qualquer tempo, rimos e sorrimos. E se alguma criança pedir para tirar foto chorando? Acabamos logo com essa “besteira” dela. Ou a foto fica pra depois. Ou ela fica de fora da foto se insistir em se expressar desse jeito. Ou a foto é feita assim mesmo e pra sempre será motivo de comentários sobre aquela criança, do quanto ela insistiu em chorar etc. etc. Como se fosse preciso justificar eternamente algo tão “bizarro”: querer tirar foto chorando, e não rindo. Há ainda as lágrimas produzidas por artistas no exercício da profissão e representação de uma personagem. Há pessoas que, sem estarem interpretando como profissionais da arte, se comportam como artistas e, por alguma razão, aceitável ou não no campo da moral, choram para comover, manipular, obter informação ou aceitação para uma ideia que defendem, um plano para conseguir algo. Daí talvez venha a expressão “lágrimas de crocodilo”, animais que derramam lágrimas após engolirem outro animal. É ótimo que as emoções se misturem e desaguem no choro. Todo mundo sai fortalecido, quem chora e quem observa, atônito, ágil, compassivo ou prestativo, aquela situação. Bonito ver o sistema humano e social se exercitando e querendo se conectar. Ao derramar lágrimas, pedimos atenção para o que se passa conosco naquele instante. O choro comunica com precisão, para além das palavras e gestos, da alegria à tristeza, do desespero ao bem-estar. Todo choro é comunicação. Toda lágrima é expressão. Pessoas que passam fome na rua sabem que, muitas vezes, só conseguem ser percebidas na força do seu desespero por comida, se choram. Muito. Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2022 PÁG. 15 Corpos pequenos, nunca inferiores AD: Uma menina de cabelos pretos e ondulados, presos em maria-chiquinhas baixas, tem olhos amendoados e sorriso terno. Está de blusa com mangas compridas e segura, à sua frente, vaso com uma planta de caule sinuoso e grandes folhas. FIM DA AD O mundo adulto é indolente. Adia entender e aceitar a legitimidade do lugar da infância na perspectiva dos direitos. Crianças têm sido um alvo tradicional de todo tipo de discriminação e violência. Mas o que leva os corpos humanos grandes a agredir os corpos humanos pequenos? Ter um corpo menor, indefeso e em fase peculiar de desenvolvimento não é delito, nem justifica sofrer delitos. O dever de cuidá-lo para que se desenvolva com dignidade não dá à família, à sociedade e ao Estado o direito de possuí-lo. A infância tem vulnerabilidade e importância intrínsecas; por isso é que precisa do mais absoluto, prioritário e incondicional amparo para se desenvolver. Convictos de que crianças são o principal sujeito de direitos do planeta, todos os países, com exceção dos Estados Unidos, assinaram, no ano de 1990, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Infância da ONU, que solicita prioridade na proteção da infância contra todas as formas de discriminação ou punição, princípio também adotado pelo Brasil no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que regulamenta o Artigo 227 da Constituição. De fato, todo cuidado é pouco num país onde a infância ainda cresce cercada de estigmas e em risco crescente, também por causa da covid-19. Não nos recordamos da sensação de viver em um corpo recém-nascido, que é dependente de pessoas adultas para sobreviver. Quem hoje desfruta de autonomia e independência para se alimentar, movimentar-se e tomar decisões parece ignorar qualquer vestígio e consciência de sua própria infância. Essa arrogância de corpos humanos grandes sobre corpos humanos pequenos, cotidianamente explícita, manifesta-se também nas leis e nas políticas públicas. Interfere negativamente no que é a maior responsabilidade das pessoas e instituições: a proteção social da infância, e com equidade. O Conjunto Infância é necessariamente múltiplo e infinitamente diferenciado. O atendimento às suas necessidades específicas deve sê-lo também. Contudo, ainda somos uma sociedade “desligada” quando se trata de garantir direitos de corpos humanos com poucos anos de vida. Há alguns anos, desembarcando no Brasil de uma viagem internacional, deparei-me com a seguinte situação. Na esteira rolante repleta, a óbvia quantidade de personagens, brinquedos e símbolos familiares indicava um ou mais voos vindos da Disney. Uma cena envolvendo o que parecia ser uma família – mulher, homem e três crianças – chamou minha atenção. O único menino, de uns sete anos, fazia bagunça, corria pra lá e pra cá, não queria ficar próximo à esteira. O pai gritava bem alto e repetidamente: “Para de correr, senão vai apanhar aqui mesmo”. Quem estava ali, ouvindo esses berros, presenciou em tempo real uma ameaça de possível violência física e moral contra a criança. Entretanto, ninguém se manifestou. Nem eu. Mas… E se esse homem estivesse ameaçando uma pessoa adulta, aos berros? Acharíamos natural? Não. Quero acreditar que reagiríamos na tentativa de evitar a agressão, mesmo que essa pessoa adulta fosse da própria família – por exemplo, a mulher que estava com ele, supostamente a mãe da criança, sua esposa. Ao menos encontraríamos um modo de deixar claro para o potencial agressor a nossa vigilância, talvez chamando a atenção da equipe de segurança daquele recinto. Imagino que nos mobilizaríamos, enfim, para evitar qualquer possibilidade de violência. E, caso ficasse evidente que a ameaça estava relacionada à discriminação ou a preconceito por gênero, sexo, cor de pele, deficiência ou religião, talvez as redes sociais fossem acionadas, sensibilizando o ativismo político, os meios de comunicação e a opinião pública. É inquietante e doloroso. Ameaças públicas de pessoas adultas contra crianças dificilmente geram desconforto, preocupação e condutas em escala suficiente para impulsionar a vontade de protegê-las a qualquer custo. A mesma sociedade que naturaliza e perdoa um corpo adulto que agride um corpo pequeno e mais frágil – independentemente de vínculos de afeto – não quer ver um corpo adulto agredir outro corpo adulto. Pessoas vivendo em corpos humanos grandes e maduros sentem que valem mais para a sociedade do que pessoas vivendo em corpos em desenvolvimento, como bebês e crianças? Tudo indica ser esse o pensamento equivocado que nos guia. Crianças não são propriedades do mundo adulto para seu deleite, afeto, cuidados e preocupação. Pela cena do aeroporto, pareceria que sim. Nela prevaleceu a ideia de que o corpo humano grande, por cuidar daquele corpo humano pequeno, seria também seu proprietário. A cena continha alguma ilegalidade ou violação de direitos? Avalio que sim, seguindo o disposto no Art. 5º do ECA: “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. No Brasil e no mundo, a infância precisa de mais aliados. Se muitos são os direitos fundamentais ameaçados durante a pandemia covid-19, imaginemos os agravos à infância, que além de enfrentar seu próprio demérito etário ainda traz pra si todas as vulnerabilidades, riscos e danos vividos por suas famílias? Minha percepção é que a infância deveria ser adotada pelos movimentos de diversidade e inclusão. Há, nesses grupos, força e desejo para incorporar a agenda da infância? Se houver, presenciaremos um exercício duplo: além de absorver a infância como assunto de diversidade, será necessário também dissecar os temas de diversidade na perspectiva da infância, numa interseccionalidade permanente. Interessante observar que, ao contrário de tantos outros aspectos ligados à questão da diversidade humana, é fácil definir o que é a infância, se adotarmos os critérios da legislação internacional. É a fase cronológica da vida que reúne pessoas de zero a 12 anos incompletos. Não depende de autodeclaração, como gênero ou raça. A espécie Homo sapiens nasce em um corpo pequeno e indefeso, mas nunca inferior. O amor não justifica tudo, e os direitos são fundamentais. Desejar verdadeiramente o bem maior para uma criança, cuidá-la, reduzir suas fontes de estresse tóxico e fortalecer suas habilidades cognitivas é fundamental. Pode parecer muito, mas ainda é muito pouco. “Cresçam e apareçam” é uma frase do passado. Publicado no portal HuffPost Brasil em setembro de 2020 PÁG. 18 Sabia que a faca não é cega? AD: A letra ‘i’ maiúscula emoldurada por um círculo, cuja base é ornada por flores estilizadas, como arabescos enroscados, que também decoram o interior da letra. As serifas inferiores são curvadas para cima. FIM DA AD A sociedade não é deficiente. Características humanas não são adjetivos. Por isso o nó não é cego. Nem é capenga um projeto que não vai bem. Assim como não é surda aquela pessoa que insiste em não aceitar seus argumentos. Deficiência não é doença. Deficiência é uma condição humana. Deficiência não é sinônimo de falta. Deficiência não é sinônimo de imperfeição. Deficiência não é sinônimo de algo vazio ou incompleto. O contrário de eficiência é ineficiência. Há pessoas com deficiência eficientes e ineficientes em uma ou em muitas perspectivas. O diferente não existe. A diferente também não. Porque todo mundo é infinitamente diferente. A deficiência é uma diferença que dialoga com todas as outras. Pra sempre. Não existe deficiência pura. Toda deficiência é composta. Toda deficiência depende. Toda deficiência é mutante. Nenhuma deficiência é binária. Inclusão não é colocar pra dentro quem tá fora. Quem ama também discrimina. Libras sem legenda tá mais na linha do marketing. Autodescrever-se no início das lives não é audiodescrição. Discriminar não é apenas eliminar acesso a bens, serviços e direitos. Discriminar também é dar direitos em excesso, que deixam de ser direitos. Lágrimas não mudam o mundo, mas deixam feliz quem chora. Superação é palavra utilizada quando se espera muito pouco daquela pessoa. Pessoas com deficiência têm direito ao planeta todos os dias, e não apenas em dias de festa. Direitos atrapalham quando nunca se teve acesso a eles? Há pessoas com deficiência que nunca foram sujeitas de direito. Há pessoas com deficiência que não sabem o que é inclusão. Há pessoas com deficiência que não querem inclusão. Especial é a palavra que a sociedade usa para designar alguém que ela acredita estar em muita desvantagem e, consequentemente, sempre será um ônus para ela. A exclusão é um exercício sem fim. O último estágio de quem se habitua a excluir é o desejo de matar. Nada é inclusivo se não for plenamente acessível. A inclusão é um exercício sem fim. O último estágio de quem se habitua a praticar a inclusão é a sociedade inclusiva. Não há prêmios para quem pratica inclusão. Ainda assim, é o único caminho para uma sociedade plena de direitos. Discriminar se aprende. Não discriminar também se aprende. Mas quem vai ensinar? Nem toda discriminação é crime. Toda discriminação é criminosa. Discriminação dói. Discriminação empobrece. Hoje é o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Publicado no portal ECOA-UOL em dezembro de 2021 PÁG. 20 Não somos figurinhas! AD: Rosto de menina com traços delicados e olhos amendoados, com cerca de 6 anos. Ela tem cabelos longos pretos, para trás da orelha e está séria. Vista de frente, metade esquerda do seu rosto é a metade da cara de um gato preto. FIM DA AD Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhas e professoras não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus “iguais”. “Mas o problema é justamente esse”, gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pelo macio de seu gato magro, branco e preto – o Bandidão. “Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças.” Os adultos se entreolhavam achando tudo muito estranho e pediram mais explicações. “Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a você, iguais entre si: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um cérebro, dez dedos na mão, dez no pé...” Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança, ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a menina nunca havia dito: “E quem não tem duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que somos iguais? Gente não é como figurinha que nós arrumamos em fila deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois.” Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento das pessoas adultas. Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para a família, a menina experimentou uma sensação nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez sentia prazer em ser gente. Dedicou um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua. Publicado na revista Nova Escola em maio de 2004 PÁG. 21 Afeto ou falta de empatia? AD: Mão esquerda adulta sobre a cabeça de um menino de olhos fechados e sério. Ele tem cerca de 5 anos, cabelos curtos, levemente desgrenhados e aparece dos ombros para cima, de camiseta. FIM DA AD Quero refletir sobre toques amorosos. Será que corpos infantis gostam de receber carinho de corpos grandes com os quais não têm qualquer intimidade ou simpatia? Nós, pessoas adultas, não. Por que então acreditar que crianças se sentem confortáveis nessa situação? Diante de um corpo pequeno infantil temos o ímpeto de expressar afeto. No Brasil, não importa muito se o bebê ou a bebê é ou não da nossa família, ou se temos ou não proximidade. O ímpeto amoroso se materializa comumente por afagos no cabelo e na face, com destaque para as bochechas. Controle? Curiosidade? Nostalgia atávica? Posse? O fato é que essas “provas de amor” públicas em shoppings, ruas ou festas de aniversário são vistas como louváveis. Seria até indelicado não se comover e aplaudir estas genuínas e espontâneas ofertas de afeto. Pequeninos seres são tão lindos, divertidos e espertos. Emocionam. São pureza, humanidade e esperança. Como resistir? Mas a sociedade vai além dessa subjugação, em nome da meiguice, de corpos pequenos aos impulsos do mundo adulto. Sim, exigimos mais das crianças e de suas famílias. Espera-se que a infância reaja com alegria aos carinhos de pessoas de corpos grandes. Quando isso não ocorre, dá-se o nome de “estranhar”. E quando “estranham”, frustram seus pais e suas mães – que justificam: ela “acabou de acordar”, ou ele está “enjoadinho hoje”. Com isso, o mundo adulto incentiva as novas gerações a expressarem gratidão por algo que provavelmente as incomoda muito. Mensagem nada edificante para quem está em desenvolvimento. De um lado, a naturalidade (ou falta de educação) com que tocamos nos cabelos, no rosto, nos pés, braços e pernas roliças de um bebê ou uma bebê, muitas vezes até emocionados com nosso próprio gesto. Do outro, a sensação infantil de impotência e sobressalto diante da possibilidade de ser tocada a qualquer momento por alguém que não conhece. Como saber se é assim mesmo que se sentem? Nunca saberemos ao certo. Mas podemos imaginar, por exemplo, quão desagradáveis seriam nossas vidas se não tivéssemos controle sobre quem poderia ou não nos beijar, segurar no colo e abraçar. Nós não nos recordamos da sensação de viver em um corpo pequeno dependente de pessoas adultas para sobreviver. Como num ciclo autofágico geracional, acreditamos ter poder sobre qualquer corpo pequeno que se aproxime de nós, assim como já nos sentimos “possuídos”, sem nossa permissão, em nossos primeiros anos de vida. Quem hoje desfruta de autonomia e independência para se alimentar, movimentar-se e tomar decisões parece não ter mais qualquer consciência de sua própria infância. Essa lacuna na memória fortalece a arrogância de corpos humanos grandes sobre corpos humanos pequenos. Este pode ser o gatilho inconsciente que nos leva ao impulso do toque. Não se trataria, portanto, de afeto. Talvez, ao contrário, um termômetro de total falta de empatia. Publicado na revista Pais&Filhos em março de 2021 PÁG. 22 A liberdade é conectar com o outro: isso se chama inclusão AD: Em ambiente escolar, três pré-adolescentes caminham lado a lado e conversam em Libras. À esquerda, o mais baixo é branco de cabelos escuros, está com a mão direita erguida, na altura do rosto e a outra abaixo do peito e para o lado; ele está voltado para os outros. O mais alto ao centro é preto de cabelos curtos, tem a mão esquerda à frente do peito, e sinaliza um C. Outro menino preto de cabelos crespos em topete para cima e raspado nas laterais, olha para eles. Estão de camisetas claras, calças compridas e levam mochilas. FIM DA AD Está com pena do Coringa? Mobilizado pela deficiência psicossocial do personagem Arthur Fleck? Saiu do cinema enraivecido? Tudo isso pode. Mas nada disso é inclusão. Lágrimas sentidas raramente têm poder transformador. Mesmo no século 21, com tantas opções, insistimos em viver no modo avião, sem estabelecer conexão com os outros. O modo avião é a anti-inclusão. Enquanto as lágrimas rolam e as sociedades se questionam sobre seus mesmos porquês, a humanidade descansa em sua incompetência atávica: não consegue dar conta das infinitamente múltiplas e radicais formas de se existir da espécie humana. Inclusão é um conceito que trata da ética do indivíduo com sua própria espécie. Estranhamente, somos uma espécie que, além de não se reconhecer como é, não se ama (embora as pessoas estejam cada vez mais apaixonadas por si mesmas). Para o bem e para o mal, em todos os tempos, há quem queira aprimorar algum aspecto intrínseco à espécie humana. Por aventura ou poder, ou por qualquer outra razão, gostamos de mexer na nossa própria constituição. Mas fica aqui um aviso: não há ajuste que retire ou acrescente valor humano a seres humanos. Todas as pessoas têm o mesmo valor humano. Valor humano é diferente de valor social. O valor social varia com os fatos e as perspectivas. O valor humano, não. Segue perene. Nada acrescenta valor humano a humanos. Isso é válido para uma super acuidade visual, musculatura de força titânica ou um intelecto genial. Do mesmo modo, nada retira valor humano de seres humanos – como perder a visão, o movimento das pernas ou o controle dos esfíncteres. O Coringa tem o mesmo valor humano que o Batman. Essa equidade é um princípio sem começo, nem fim. Vem na forma de um combo, lacrado, com conteúdo libertador e frustrante ao mesmo tempo. A liberdade vem do alívio. A frustração, também. Do alívio de se perceber o óbvio: que crianças com altas habilidades têm o mesmo valor humano que crianças com deficiência intelectual, por exemplo. Isso é óbvio, mas soa como revolucionário. Culpa do modo avião. Imaginem a confusão do dia em que os governos acreditarem que todas as pessoas têm o mesmo valor humano. Nada ficará fora das leis, políticas e orçamentos públicos, como existe hoje. Tudo a descobrir. Famílias que têm filhos com deficiência ficarão menos sós. Deixarão de ser consideradas azaradas porque nelas nasceram crianças que simbolizariam os deslizes de uma natureza chamada de sã. Passariam a vibrar em total pertencimento. Crianças em situação de pobreza continuarão ganhando gratuidade em escolas privadas, mas agora independentemente de suas boas notas... Se toda criança tem o mesmo valor, facilitar seu acesso à educação independe da velocidade que tenha para aprender. Desmoronam-se as competições. No seu lugar, vem o vazio. Após séculos lutando para saber quem de nós tem mais valor humano, será delicadíssimo abandonar essa gincana no meio ou imaginá-la sem vencedores e perdedores. Há um misterioso prazer em dar uma nota ao valor de cada participante do jogo. E há extremo prazer em conquistar uma nota mais alta, mesmo que seja para perdê-la em seguida. A corrida não tem fim. Todas as pessoas sofrem, mas nem todas sabem que sofrem. Felizmente, há filmes com Coringas. Na dor pelo Coringa, cabem todas as dores de uma humanidade combalida por mais valor. Na indignação pelo que sofre o personagem e pelo mal que causa, cabe o falso consolo de não se ser tão violado ou violador assim. A luta é tão exaustiva, que não a percebemos mais. Famintos, ironicamente somos nós mesmos uma mesa farta e infinita do alimento que buscamos, o valor humano. Como apaziguar a espécie? Dizendo que está tudo bem em ela ser como é. Que o vazio vai passar. Que vai ser bom nunca mais ter que escolher entre pessoas que ouvem ou não ouvem, andam ou não andam, têm um intelecto veloz ou não, enxergam ou não enxergam. Que a equidade humana não é um problema. Que vai ser bom ter conexão. Que vai ser bom sair da prisão. Que a gincana do valor humano desigual é uma prisão. Que liberdade humana é sair do modo avião, da desconexão. E que tudo isso tem o nome de inclusão. Praticar inclusão é se dedicar a um roteiro de expansão da consciência para dar conta da humanidade como ela é, e não mais como nós gostaríamos que fosse. Publicado no NEXO Jornal em novembro de 2019 PÁG. 24 Qual o trabalho que você leva para casa? AD: Um menino magro de cabelos claros, lisos e repartidos para o lado, está junto a um cão com porte de labrador, com uma mancha branca central do topo da cabeça até todo peito e orelhas caídas. Ambos aparecem do peito para cima, olhando à frente. O menino está de camisa risca de giz e gravata escura, e o cão só de gola e gravata. FIM DA AD Na covid-19, o trabalho entrou na intimidade do lar. Ao deslocar rotinas e desequilibrar a balança entre as vidas profissional e privada, o isolamento intrafamiliar escancarou, para as crianças cujas mães e pais, quase de repente, passaram a trabalhar em casa, sigilos bem guardados pelo mundo adulto. Entre eles, o fato de que muitas pessoas não gostam do seu trabalho. E assim, uma novíssima geração de meninas e meninos que apenas começa a viver foi envolvida por angústias típicas do ciclo laboral. Qual é a concepção de trabalho – também como direito humano e fundamental – que estamos levando pra dentro de casa? Mamãe vai trabalhar. Papai vai trabalhar. Até a covid-19, o verbo “trabalhar” se bastava como intransitivo. Expressava uma ação completa e não pedia complemento. Até que veio o isolamento social. Com pai e mãe como casal – ou isoladamente – se organizando para exercer suas profissões em casa, tem sido inevitável para as crianças observarem nas pessoas adultas da família sentimentos e reações antes (aparentemente) imperceptíveis. Agora que já sabem o quanto a vida profissional pode magoar, irritar, cansar, sem ser edificante ou prazerosa, farão muitas perguntas. Teremos que contar a verdade. O verbo “trabalhar”, no sentido deste artigo, pode até continuar intransitivo, mas não é mais o dono absoluto da frase. A oração cresceu e o sujeito se complexificou. Vai precisar da ajuda de adjuntos adverbiais ou predicativos. “Sair pro trabalho”, expressão já desconfigurada, pode ficar obsoleta. O teletrabalho veio para ficar. Não fez cerimônia ou bateu na porta. Nem se preocupou em manter as aparências. Simplesmente entrou, pois já tinha cópia da chave. E se deu ao direito de mudar os móveis de lugar em busca de um sinal de internet melhor. Quartos infantis viraram escritórios. Mobílias coloridas se amontoaram de papel ou foram soterradas por impressoras. E do que será que as crianças mais se ressentem? Da privacidade perdida ao terem sido reveladas, por descuido, em seus pijamas? Ou quem sabe do relance flagrado, durante uma reunião remota, no qual pediam por mais atenção? Do esforço para aceitar que, mesmo com pai e mãe mais tempo por perto, não podem desfrutar, na mesma proporção, de suas presenças? Das impaciências repentinas? Certamente, as crianças vão notar que há algo de sério nessas atividades que não entendem – algo sagrado, dentro do igualmente sagrado espaço do lar. Mas isso será o suficiente para manter, na percepção delas, a dignidade do ato de trabalhar? Qual é a concepção de trabalho que cada família oferece para as suas crianças? Trabalho com propósito? Trabalho por trabalho? Trabalho por remuneração, ainda que sem prazer? Trabalho como castigo? Trabalho para sobreviver? Trabalho só porque precisa? Ou trabalho como realização profunda e existencial? Há esforço por parte de inúmeras famílias em organizar horários e atividades em tempos de pandemia. Talvez dê certo, até o mercado chegar fora da hora combinada. O planejamento vira terra de ninguém. As crianças acompanham o processo e sua confusão. Quem vai parar o que está fazendo para lidar com um imprevisto? O que vale mais na concepção de trabalho para aquele casal? Ter uma remuneração melhor, mais estabilidade ou ser funcionária de uma grande empresa? São infindáveis ajustes para compatibilizar agendas laborais, afetivas e higiênicas no sentido mais amplo da palavra. Em cada lar há um jogo ou gincana em curso. Para as crianças, é como se simplesmente estivessem passando para uma nova fase do mesmo jogo: a busca da paz, do aconchego, da diversão, do afeto e da segurança em família. Na fase anterior, pai e mãe trabalhavam. Agora, elas se sentem trabalhando também. Trabalhar já era verbo conjugado na prática, infelizmente, por milhões de meninos e meninas de famílias de baixíssima renda. E, nesses casos, o isolamento pela covid-19, além de potencializar esse agravo ao desenvolvimento infantil, fortaleceu outros, propiciando todo tipo de violência doméstica. Isso em qualquer família, sem distinção de classe social, embora a dificuldade de se manter com renda neste momento histórico aumente o risco das pessoas adultas descontarem nas crianças suas doenças, carências, preocupações e descontroles. A covid-19 terá acabado com a fantasia, comum na população infantil mais protegida, de que todo trabalho é justo. A consciência do que ainda falta para o exercício desse direito só cresce. Até o confinamento, as famílias vinham evitando – na medida do possível – revelar para a prole a verdade sobre os desafios de se trabalhar no que se gosta, de ser atendido nos direitos trabalhistas, de se oferecer direitos trabalhistas; e de associar tudo isso à dignidade, qualidade de vida e remuneração para educar quem chega na família e também pra quem envelhece ou fica doente, incluindo a saúde de quem está no auge de sua força de trabalho. Essa ilusão infantil do trabalho necessariamente bom acabou para algumas crianças. Assim como o mistério em torno da Páscoa ou do Natal também se esvai em algum momento. E dói, quando acontece antes da hora. Será que, a partir de agora, as famílias vão incorporar conversas sobre o sentido e o valor do trabalho nos almoços de domingo? Já deveríamos ter comentado com elas, na hora de inventar histórias sobre os dilemas que o Coelhinho e o Papai Noel enfrentam para exercer seus ofícios, ainda que devotos? Quem sabe dizer, por exemplo, que os dois andam cansados de entregar ovos e presentes, que têm outros sonhos, ideias, que gostariam de prospectar diferentes possibilidades de renda, de satisfação e de contribuição para o país? Não deu tempo. Mas ainda que tivéssemos sabido com muita antecedência que o isolamento social viria, e por tanto tempo, talvez não tivéssemos tido ânimo de mudar a lenda do trabalho feliz – estávamos muito ocupados, trabalhando. Publicado no jornal O Globo em junho de 2020 PÁG. 27 Filhos reais ou virtuais? AD: Um homem voltado ligeiramente para a esquerda olha à sua frente. Ele está de capacete com visor, usa casaco de terno claro abotoado, gravata, calça preta e uma faixa branca de tecido que desce do ombro direito até a cintura do lado esquerdo, onde a mão está no bolso da calça e a outra mão apoiada numa bengala. FIM DA AD Presidente da República. Astronauta. Atleta olímpica. Maior jurista do Brasil. Desde crianças imaginamos o futuro brilhante de nossa prole. Gestação, parto, primeiros dias em casa... tudo quase perfeito. Algumas crianças recém-nascidas são bem diferentes daquelas acalentadas em sonhos. Em vez de um bebê de pele mais morena e cabeludo, nasce outro, de pele clara, careca. No lugar da roliça, chega uma menina pelancuda, magra demais. O olho azul do avô não veio, mas... e daí? “Importa é que tenha saúde”. Santa frase. Diante dela, agradecemos a Deus a graça recebida e a frustração desaparece. E o que acontece quando o bebê ou a bebê real é muito, mas muito diferente do que a família desejava? Nem pior nem melhor, apenas muito diferente. E se a criança recém-nascida não tiver nada de linda ou de saudável (na concepção mais comum, mesmo que dúbia, deste vocábulo)? Que mancha enorme e avermelhada é aquela bem na face de quem acabou de nascer? E se a criança recém-nascida chegar sem um dedinho, for prematura, precisar se operar com urgência, tiver uma disfunção qualquer? Uma alteração genética? Nesses casos, perderá parte de sua humanidade? Desânimo, susto, medo, choque. Incentivados por toda a vida para receber filhos e filhas imaginários, quase virtuais, é natural que pai e mãe sintam dificuldade em lidar com estes seres reais. Culturalmente, somos ensinados a planejar o futuro de uma criança-sonho. Mas ao receber nos braços bebês com algum tipo de comprometimento, seremos capazes de imaginá-los ou imaginá-las na cadeira da presidência da República? Ou ganhando o prêmio Nobel de Física? Ou simplesmente – e, o mais importante – sendo uma pessoa que usufrui com dignidade de sua cidadania e/ou é responsável por uma família feliz? Pediatras, enfermeiras e obstetras com frequência podem ser inábeis diante de crianças recém-nascidas que não correspondem à expectativa de familiares e da equipe médica. Em vez de fortalecerem os vínculos afetivos entre mães e pais que se iniciam naquele instante, há profissionais da área de saúde (primeiras pessoas a ter contato com a família) que, por falta de informação (não de conhecimento técnico) e de consciência sobre a importância de seu papel, agem com constrangimento, dando àquele ser que acabou de chegar o lugar de “doente” ou de um “deslize da natureza”, como se a humanidade fosse absolutamente homogênea, previsível, imutável. O ranço da homogeneização permeia humanos de qualquer idade. Até mesmo adolescentes, que hoje se rebelam por seus pais e mães exigirem deles e delas comportamentos estereotipados, já se exercitam nos sonhos de um filho ou filha idealizada. Voltando às crianças recém-nascidas, se a limitação é séria, ou pelo menos visível, até as visitas, tão gentis e bem intencionadas, também se enrolam. Perdem a naturalidade e evitam fazer perguntas costumeiras, que toda mãe adora responder: “ela está mamando bem?”, “chora muito?”, “tem cólicas?”, “parto normal ou cesariana?”. Poucas pessoas próximas se arriscam a fazer o clássico jogo que dá a seres humanos recém-nascidos o direito de serem percebidos, genética e afetivamente, como parte daquela família: “olha a boca, é do pai”; “tem uma implantação de cabelo igualzinha à da avó materna”; “lembra demais o irmão quando nasceu”, “guloso que nem a prima”. Tantos equívocos de abordagem refletem a cerimônia que temos com aquela que deveria ser a mais estimulada de todas as reflexões, desde a infância: a ética do indivíduo com sua espécie, a antropoética, reflexão que deveria anteceder às próprias questões sociais. Ao contrário, o tema diversidade humana, que até já entra nas discussões comunitárias, nas salas de aula e no currículo das faculdades, entra por força de lei, como algo menor ou algo a mais, quase sempre um requinte, um detalhe, uma especialização, uma matéria opcional, um extra. Discutir diversidade humana não tem o status de discutir desigualdade social, diferença racial, opção sexual etc. Mas que absurdo! Como assim? Pois se a diversidade é a característica mais intrínseca do gênero Homo, da espécie sapiens. Reconhecer que a humanidade sempre buscou e buscará diversas formas de se manifestar é assumir um novo eixo ético em todas as relações sociais que nos permitirá ser pais, mães, arquitetos, jornalistas, professoras, médicas e psicólogos muito melhores, mais lúcidos, mais eficientes. A criança nos surpreende com suas diferenças porque é humana. Repito: nem pior nem melhor, apenas surpreendente. Também crianças adotadas, sobrinhos e sobrinhas que ajudamos a criar, estudantes que nos recebem na sala de aula exigirão de nós sabedoria diária para lidar com suas diferenças, porque é nelas que se legitimam e é através delas que nos renovam. O chamado momento da notícia, aquele no qual reconhecemos a prole que nos cabe, é um exercício que, até a nossa morte, será diário. Lamentavelmente, famílias inteiras baixam imediatamente suas expectativas em relação a suas crianças recém-nascidas reais por não conseguirem adequá-las a suas crias recém-nascidas imaginárias. Inabilidade que tende a se replicar no relacionamento familiar, iniciado naqueles instantes. Que pena. O futuro de qualquer pessoa é inimaginável. Sem exceções, todo filho ou filha quando chega é um enigma, que nos encanta e amedronta desvendar. Publicado no jornal O Globo em fevereiro de 2001 PÁG. 30 A tragédia Yanomami à luz da Convenção das Pessoas com Deficiência da ONU AD: Um rosto Yanomami bem jovem nos encara por trás de um cocar de muitas penas. Aparece até os olhos escuros, os cabelos repartidos aleatoriamente, com uma tira atada na testa, onde tem um traço vertical pontiagudo, pintado entre os olhos. FIM DA AD Algumas conexões são automáticas no campo dos direitos humanos, outras não. Por isso, para abordar a tragédia Yanomami, trago a Convenção das Pessoas com Deficiência, assinada na ONU em 2007 e promulgada pelo Brasil em 2008, particularmente seu Artigo 11, sobre “Situações de risco e emergências humanitárias”. Muito provavelmente crianças, adolescentes, jovens e pessoas adultas sobreviventes do povo Yanomami se tornarão alguém com deficiência, tanto pela ingestão contínua de mercúrio – e sabe-se lá mais o quê em termos de substâncias que atacam a saúde neurológica e física – quanto pela desnutrição, doenças não tratadas, endemias como a da malária e as epidemias longas, como a covid-19. Tornar-se uma pessoa com deficiência não é algo desejável, mas a tragédia só se configura pelo contexto do acontecimento: quando todos os esforços governamentais são consumados nesta direção, como se deu na pandemia. Conforme atesta a Organização Mundial da Saúde (OMS), a exposição ao metilmercúrio, resultante do consumo de peixes e outros animais aquáticos pela mãe, pode afetar profundamente o cérebro em crescimento e o sistema nervoso de um feto. Portanto, o pensamento cognitivo, a memória, a atenção, a linguagem e as habilidades motoras finas e visuais espaciais podem ser afetadas em crianças que foram expostas ao metilmercúrio durante o período de gestação. O Brasil está sob alerta. Somos uma nação totalmente imersa na situação prevista na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, conforme seu Artigo 11: Em conformidade com suas obrigações decorrentes do direito internacional, inclusive do direito humanitário internacional e do direito internacional relativo aos direitos humanos, os Estados Partes deverão tomar todas as medidas necessárias para assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência que se encontrarem em situações de risco, inclusive situações de conflito armado, emergências humanitárias e ocorrência de desastres naturais. A dizimação consumada de grande parte da população Yanomami se configura, simultaneamente, como situação de conflito armado, emergência humanitária e ocorrência de desastre natural – causado por decisões políticas e econômicas não naturais. Nada é apenas social ou ambiental. O conceito de inclusão, quando abordado de forma ampla, conota e expressa a íntima relação da espécie Homo sapiens com o planeta que a recebe e a mantém viva – ainda que com injustiça e desigualdade. Políticas públicas só poderão amenizar o propósito destruidor de ataque e dizimação da população Yanomami se criarem soluções alinhadas às necessidades específicas de quem se torna uma pessoa com deficiência. A Convenção das Pessoas com Deficiência da ONU foi o primeiro tratado de direitos humanos a ser sancionado no Brasil, em 2008, com força de Constituição e deve ser considerada em qualquer decisão no Legislativo, Executivo e Judiciário do Brasil sobre a proteção e a segurança, no presente e no futuro, dos, das e des Yanomami. Publicado no portal JOTA em fevereiro de 2023 PÁG. 32 Quanto custa discriminar? AD: Um garoto loiro de cabelos ondulados, visto de perfil direito e dos ombros para cima, olha-se sério diante de um espelho oval, onde está refletido o rosto de um garoto negro com a camisa mais clara que a do primeiro. FIM DA AD Dinheiro e dor. A inclusão é um fluxo sistêmico. Toda vez que uma pessoa ou instituição age de modo discriminatório, bloqueando direitos, o sistema inteiro é atacado. E para. Aconteceu esta semana, após o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, considerado uma violência por racismo estrutural. De imediato, a indignação petrificou as pessoas; e ainda que rapidamente tenham reagido, essa imobilidade reflete ou é reflexo de uma devastação maior. No assassinato tem ilegalidade, injustiça e vergonha. Com ele, o Estado se empobreceu muito – ainda que essa contabilidade nunca tenha sido feita. Permitam que eu faça algumas perguntas antes de continuar. Vocês são gente? Se sentem como gente? Se percebem como gente? Acredito que sim. Todas as pessoas que acessam o conteúdo deste artigo agora, lendo ou ouvindo por meio de recursos de acessibilidade, são legitimamente humanas e têm idêntico valor humano. A espécie Homo sapiens é não binária por natureza – em relação a qualquer diferença. A aterrissagem humana no planeta é duplamente desordenada. Inicialmente, porque nunca nasceu ou nascerá alguém igual a alguém, uma assimetria que segue em expansão ao longo da vida por conta de estímulos e insumos familiares, econômicos, culturais, entre outros. Mas, além da humanidade ser formada por seres totalmente diferentes entre si, de que modo nascem? Embaralhados, sem qualquer ordem lógica no desembarque. Não há filas prioritárias. Não há ordem ou cronologia decifrada até hoje pela ciência. O valor humano dos seres humanos vem das nossas diferenças infinitas, e não das nossas semelhanças finitas, e essa é a base de toda reflexão proposta neste artigo. Uma vez que sob qualquer ângulo a manifestação da humanidade é um caos, toda tentativa de se categorizar e ordenar valores humanos e sociais em relação a pessoas e grupos irá fracassar, mais cedo ou mais tarde. Antes, infelizmente, terá enviesado planejamentos estratégicos, orçamentos públicos e privados em diversas áreas, especificamente na educação. A escola inclusiva deve ser o berço que embala e acolhe uma sociedade inclusiva. Isso depende de que modo os governos, principalmente o federal, planejam, conduzem e destinam recursos às suas políticas e programas. É impossível organizar em conjuntos finitos um número infinito de combinações por religião, gênero, cor, raça, deficiência ou território. Mas a sociedade tenta. Está acostumada a considerar, por exemplo, que uma criança com deficiência intelectual, ainda que tratada com muito amor, vale menos para o futuro de sua família e de sua comunidade do que uma outra criança considerada muito inteligente. E inspirada neste modo secular cria grupos específicos de separação, que chama de especiais, incentivando a fragmentação de uma geração e, quase sempre, a rejeição mútua, ainda que disfarçadamente. Julgar a humanidade de seres humanos para, em seguida, lhes atribuir valores mais ou menos humanos é uma prática muito perigosa porque nos habilita e conforta para realizar, sem refletir, outras escolhas de exclusão, que começam pequenas, ficam médias e depois grandes. A exclusão e a discriminação são conceitos próximos. Levados às últimas consequências, matam. A morte pode ser com sangue ou sem sangue. Como controlar este impulso incontrolável de organizar a humanidade em categorias que aprisionam a própria humanidade? Esta talvez seja a principal herança recebida de nossas famílias, que nos fizeram acreditar que sim, que é possível hierarquizar condições humanas associando-lhes a distintos valores humanos e dando-lhes notas, como se estivéssemos o tempo todo numa eterna prova de matemática e precisando de muitos pontos para passar de ano. Este equivocado hábito de julgar a humanidade alheia tem passado de geração em geração. A discriminação não se dá apenas quando atribuímos “notas baixas” a alguém; “notas altas” também são excludentes e tiram aquela pessoa do único lugar seguro na sociedade: o lugar de sujeito de todo e qualquer direito. Rotular pessoas com deficiência de “especiais” é um bom modelo dessa discriminação disfarçada de mérito. Há exemplos típicos de situações similares em outros campos. São elogios ou palavras de amor que embrulham “pra presente” o baixíssimo compromisso em se praticar, diariamente, o não racismo, a não misoginia ou o não etarismo, entre outros exemplos. Discriminar custa dor e dinheiro, e impacta destrutivamente tanto quem discrimina quanto quem é discriminado. Ninguém acorda inclusivo ou não inclusivo. Tudo exige esforço diário, para o bem ou para o mal. Nós já sabemos quanto custa discriminar. Agora precisamos urgentemente saber quanto custa não discriminar, expandindo os critérios dicotomizados que regem a elaboração de orçamentos públicos e privados. Um objetivo seria saber quanto custa aos cofres públicos o impacto do racismo estrutural, por exemplo. Ou da separação de estudantes com e sem deficiência desde a educação infantil. Qual será a economicidade de se praticar um empenho coletivo e público de não mais se discriminar por qualquer diferença ou desigualdade? Dividir tudo em dois lados, me parece, nunca vai dar certo. Os dois lados nem existem. Inclusão é viver na infinitude do meio. Publicado no portal ECOA-UOL em novembro de 2020 PÁG. 34 Muito carinho e poucos direitos AD: Representação do desenho do Homem Vitruviano – que é um homem atlético nu, de cabelos fartos, que tem os braços e pernas duplicados dentro de um círculo sobreposto a um quadrado. Os braços estão abertos na linha dos ombros e depois levemente para cima, e as pernas, unidas e afastadas, tangenciam perfeitamente o círculo e o quadrado. O que difere da obra original, é que uma das pernas afastadas é uma prótese e ele usa um colar de identificação de neurodivergência. Sobre a imagem, selas sequenciais do alfabeto braile. FIM DA AD Se eu pudesse, acrescentaria ao Estatuto da Criança e do Adolescente um direito novo: “Toda criança tem o direito de conhecer a humanidade como ela é, e não como nós, pessoas adultas, gostaríamos que fosse”. Temos mentido para a infância, induzindo-lhe a pensar como ainda hoje pensamos: a deficiência é um simples detalhe da natureza, que de vez em quando é pega em flagrante cometendo seus deslizes. Bebês que nascem com deficiência seriam a materialização desses deslizes, “pontos fora da curva” no contexto de uma espécie supostamente “homogênea” e “sã”. Trata-se de um delírio coletivo do mundo adulto. A infância não pode participar dele, sob o risco de não entender o sentido de uma sociedade inclusiva e, portanto, não ter interesse em se empenhar por ela e dela participar. A deficiência é parte visceral da vida, jamais um pormenor dela. Suas causas são múltiplas e, mesmo com todos os exames, cuidados e procedimentos aceitos em determinados países, é impossível tirá-la de cena, durante a concepção, gestação, parto e vida. Certamente, pré-natais dignos, públicos e gratuitos dariam à infância brasileira possibilidades de nascer e viver sem as deficiências evitáveis, aquelas causadas por falta de oxigenação na hora do parto ou pelo uso de certas substâncias na gestação, entre outras. Contudo, somos uma espécie vulnerável, que coleciona doenças e acidentes no decorrer da vida que, por sua vez, causam deficiência. A falsa premissa de que a deficiência representa um “azar ocasional” se manifesta basicamente por três pensamentos – igualmente ultrapassados, e nem sempre revelados. O primeiro é que, um dia, pessoas com deficiência irão desaparecer do mapa. Não acontecerá. No Brasil, em função das desigualdades sociais, espera-se um número cada vez maior de pessoas com deficiência, a maioria vivendo na pobreza. O segundo é que, com sorte, é possível passar pela vida sem se deparar com a deficiência, no trabalho e na família. Não acontecerá. Nesta direção, crianças precisam ser orientadas para saber que só se tornarão profissionais competentes, independentemente do trabalho que escolherem, se entenderem de acessibilidade e inclusão. Nessa perspectiva inclusiva, a chegada de alguém com deficiência na escola, como professora, gestora ou estudante, não será um susto. Nem em qualquer empresa ou espaço público. O terceiro pensamento concebe que pessoas com deficiência compõem uma constelação de seres exóticos que orbitam ao redor da Terra e que, de vez em quando, a invadem. A partir daí, podem ser rejeitadas e expulsas – ou podem até ser bem tratadas, mas como visitas temporárias nas casas, na sociedade e no planeta. Como visitas, que “generosamente” recebemos, só pedimos que seja em dia e horário combinados antecipadamente, de preferência em dias de festa e celebrações de datas ligadas ao tema. Afinal, fica até mal não se emocionar em efemérides como “o dia da pessoa com deficiência”. Percebidas como visitas ou intrusas, dá no mesmo. A mensagem é que tudo bem adiar as necessidades específicas de se locomover, de aprender ou de se expressar de uma criança ou adolescente com deficiência. Esse jeito estranho, estigmatizante e capacitista que define o modo como percebemos quem nasce com deficiência ou se torna pessoa com deficiência pode até parecer amor, mas é sobretudo uma forma de controle. Em nome desse “amor de controle”, tudo é feito com muito carinho – e nenhum direito. A deficiência integra um TODO humano indivisível, não classificável ou hierarquizável. Alterações genéticas, como a síndrome de Down, são 100% humanas. Crianças precisam saber a verdade, que toda pessoa, desde que nasce, tem o mesmo valor humano, que não se mede por nada, não diminui ou aumenta. Essa é a conversa que precisamos ter com as crianças. E se ao final dela vierem com a pergunta: “por que algumas crianças têm deficiência?” Respire, aliviada, e responda: “pela mesma razão que algumas não têm.” Publicado na revista Pais&Filhos em maio de 2021 PÁG. 36 Olimpíadas e condições humanas AD: Três medalhas suspensas, com três rostos de perfil. A do centro, mais próxima, tem o rosto de uma mulher negra voltada para a esquerda. Ela tem cabelos curtos alisados, presos em um coque baixo. Nas outras medalhas, os rostos estão voltados para a direita. Uma mulher branca de cabelos longos, presos em rabo de cavalo, e na outra, um homem branco de cabelos curtos e barba. Os três estão de camiseta regata. FIM DA AD “Aqui está o melhor da raça humana!” Esta frase foi pronunciada por um jornalista na transmissão da abertura das Olimpíadas na Austrália. Na hora, tive um arrepio. Depois, um constrangimento. Envergonhei-me pelo comentarista, pela sua família, pela minha família, pelo povo brasileiro, pela humanidade que está viva neste setembro de 2000. Humanidade que tem dificuldades em se reconhecer como é. Cada pessoa é um pacote indivisível de talentos e de limitações combinados em proporções variáveis em função das oportunidades que a vida traz desde a concepção. Pessoas jovens, adultas e idosas são mais ou menos talentosas, ou limitadas, dependendo dos recursos que o meio ambiente oferece. Outro dia, cheguei com uma amiga cega no quarto de um hotel no qual nunca havíamos entrado. Mal destranquei a porta ela caminhou pelo recinto com segurança, abriu o armário com uma agilidade espantosa. E eu lá, parada, tateando para encontrar o interruptor na parede. Falei, num lapso (e que lapso!): “espera, está escuro, deixa eu acender a luz”. Minha amiga riu: “quem precisa de luz aqui é você”. Sou contra o “mau uso” das Olimpíadas. Devemos nos contentar com interpretações equivocadas sobre o que é, dizem, a maior confraternização do planeta? A tecnologia que nos permite acompanhar com boa definição o que acontece na Oceania evolui com tal rapidez que nem encontro mais um bom adjetivo para descrevê-la. Atletas nos emocionam e alcançam suas metas, testando de forma disciplinada seus limites. Por que não seguir o mesmo ritmo no que tange às nossas reflexões humanísticas? Mas não, ligamos a televisão e lá está o comentário velho, antigo, não holístico, não inclusivo. Acreditar que na Olimpíada está o melhor da raça humana é acreditar que existe o pior da raça humana. Levando em conta que atletas aproximam-se do ideal de saúde, beleza, bom preparo físico etc., quero saber quem representa o pior da raça humana. Os que nascem com alguma deficiência mais visível? Uma síndrome genética, como a de Down ou de Williams? Crianças que têm doenças renais crônicas e que se desenvolvem muito lentamente? Ou aquelas que foram ostomizadas em decorrência de câncer, bala perdida, acidente de carro, queda de laje? Ou que, por qualquer razão, ficaram tetraplégicas ou surdas? Tenho notado: não é exato dizer que indivíduos nessas condições não entram na concepção do social de nossa sociedade. Entram, mas entram acuados, em um espaço delimitado que lhes cabe por generosidade ou por concessão, formas tão sutis de autoritarismo. É o lugar do aborígene da Austrália, apontado e filmado pelas televisões do mundo como o exótico-bem-vindo-e-agora-amado nas arquibancadas dos jogos em Sidney, neste ano de 2000. É o lugar de quem assiste, mas não participa. É o lugar de quem cria, mas não tem o crédito autoral. É o lugar da visita para a qual arrumamos a casa, fazemos um bolo, colocamos roupa nova, mas de quem esperamos educação suficiente para não invadir nossa intimidade. Mas essa intimidade é justamente o social! O jornalista que citei não agiu por mal. Apenas, nos seus comentários, refletiu uma sociedade pretensiosa e incapaz de perceber a deficiência como questão humana. Por isso, tenhamos um pouco mais de cuidado ao falar sobre gente. Fácil ser ético quando abordamos o igual, o parecido, o homogêneo, o padrão, o desejável. Difícil ser ético diante da diversidade humana, que é, queiramos ou não, a característica mais típica da espécie sapiens. Quero ter, de nossos comentaristas, o orgulho que tenho de nossos atletas. Olimpíadas existem para agregar e não para segregar condições humanas. Publicado no Jornal do Brasil em setembro de 2000 PÁG.38 Por que mesmo as crianças vão para a escola? AD: Numa fotografia com moldura quadrada, oito meninas e meninos pré-adolescentes posam para foto. Estão lado a lado e de forma intercalada, todo o grupo usando camisetas, calças e mochilas. À esquerda e atrás, um jovem mais alto de óculos escuros; e à frente, um menino em cadeira de rodas. FIM DA AD “Para ter uma profissão”; “para entrar na faculdade”; “para aprender matemática, física e português”. Tudo isso pode ser verdade, mas é muito pouco se quantificarmos quantas horas de um dia – e quanto tempo de uma vida – são totalmente dedicadas à escola e às suas tarefas em casa. Por que razão as crianças vão pra escola? Para estudar – essa é uma resposta bastante precária. Tão rasa quanto acreditar que bebemos água porque temos sede. Escola é o espaço onde as gerações se encontram, se entendem e se reconhecem como parte de uma geração indivisível, única e temporal. É na escola que crianças e adolescentes de idade próxima desenvolvem e testam a técnica, a intuição, a sensibilidade, a criatividade, a flexibilidade e a arte de formar, entre si, parcerias indispensáveis para o futuro da nação. Quem não vai para a escola fica fora da memória afetiva de sua geração, e pra sempre. Sou contra a prática do homeschooling. Desejo que toda criança se perceba empática e sinapticamente enredada às demais crianças, cúmplices pelo simples fato de terem nascido na mesma época; morarem naquele bairro ou passarem juntas pela pandemia da covid-19, entre outras similitudes. Embora ainda não alcancemos que tipo de marcas o isolamento social e o sofrimento generalizado provocado pela pandemia irão deixar para quem está na infância e adolescência, é certo que impactarão fortemente quem está em fases tão sensíveis de desenvolvimento. Na escola, nem tudo são – nem serão – flores. Natural que seja assim. Dói para a criança, em alguma medida, construir a sua autoestima social. Mais ainda se, até então, seu único espaço de interação era com a família em um lar cuidador, protetor e amoroso, como idealmente todos deveriam ser. A formação da autoestima social envolve riscos, desafios, descobertas e experiências – pro “bem” e pro “mal”. Qual será a sensação que uma criança tem ao ficar tantas horas com pessoas de corpos tão vulneráveis e pequenos como o dela? Deve ser de muita emoção e felicidade, mesmo que envolva disputa de atenção e brinquedos. Mas no decorrer da vida a gente se esquece de tudo isso que viveu e sentiu. Documentado eternamente só ficam mesmo o currículo escolar, notas e conceitos. Boletins com avaliações que depois serão motivo de orgulho, frustração ou piada. É nossa autoestima social sendo moldada a partir da avaliação das pessoas de corpos grandes que cuidavam de nós naquele espaço. Cada pessoa adulta é responsável pela escola que temos no Brasil, e também por transformá-la em algo menos excludente sob qualquer perspectiva: a educação inclusiva. Conversar sobre qual o motivo das crianças irem para a escola deveria ser assunto em família ou em bar, com amigos e amigas, tema de interesse público para qualquer idade. Daí, amadurecendo reflexões e desenvolvendo uma visão mais crítica sobre o sentido e o valor de se frequentar diariamente uma sala de aula desde a infância, e por toda a vida, imagino que teríamos na ponta da língua respostas mais consistentes, livres de jargões e pieguismos. Ao contrário, é comum que as famílias comecem a pensar sobre educação e, principalmente, educação inclusiva, “no susto”, sob ameaças, urgências e necessidades pessoais. Tudo sem terem acumulado conteúdo crítico que dê conta da complexidade da demanda. Podemos até argumentar que nosso desinteresse vem da rotina doméstica e laboral estafante – e do trabalho que dá sobreviver e manter a saúde da prole em dia. Mas não é por isso que somos tão naives quando se trata de conversar sobre a vida escolar. Falta veracidade nesta argumentação. A história é outra: preferimos seguir no automático, como se ir para a creche ou a escola fosse uma decorrência natural – quase biológica – na vida de alguém que acabou de nascer. Assim como andar vem depois de engatinhar. Mas não é. Existe um futuro individual e cidadão a ser pensado e decidido. E voltando à Química, à História, à Geografia, às provas, às notas e à Literatura… Ah, sim. Isso a escola oferece – também. Publicado na revista Pais&Filhos em junho de 2021 PÁG. 40 Onde mora a inclusão? AD: Vistos de costas, dois jovens com mochilas escolares andam por uma estrada reta rumo à letra ‘i’ gigante, que desponta na linha do horizonte. A jovem tem cabelos escuros e longos, levemente presos com fivela atrás. Está de camiseta, bermuda e tênis. Ele tem cabelos escuros curtos, está de camiseta, calça jeans e tênis. A estrada é ladeada por vegetação baixa e montanhas ao longe. FIM DA AD O que existe entre a criança mais magra e a mais gorda? Dezenas de crianças nem magras, nem gordas – igualmente distantes dos extremos, talvez com um peso médio único? Ou dezenas de crianças com pesos totalmente distintos? A pergunta faz refletir sobre o quanto as pessoas se sentem atraídas pelos extremos. Tudo é dividido em dois lados – um positivo e outro negativo – e avaliado a partir deles. Acontece quando a criança com deficiência chega à escola. Uma de duas se dá. Ou ela se converte em desafio extremo ou em presente maravilhoso. Ambas as opções são inadequadas. Quando a criança com deficiência vira o foco principal de atenção da escola – e, ainda assim, nem sempre é considerada uma parte legítima dela – se transforma em um álibi para que outras questões saiam de pauta. Como as crianças ali no “meio” estão? Como dádiva ou desafio, crianças com deficiência arrastam nossa análise para os polos. Os extremos nos atraem porque nos dão segurança para observar qualquer situação. É um local tão confortável que se aventurar pelo meio parece desnecessário e tacanho. Mas as possibilidades do meio não têm nada de tacanhas. São nelas que floresce a prática da inclusão. É no meio que residem as distintas formas de se rezar, comer, pensar, correr, enxergar, ouvir, amar ou não. Sempre que alguém ganha um rótulo, ganha também um estigma que fica para a vida: a mais ou a menos habilidosa da família ou da turma, ou nos esportes, na matemática, na música ou no jeito de fazer carinho. Os estigmas têm relação direta com a nossa sedução pelos extremos e pelas comparações, a partir dos extremos. Vêm da nossa dificuldade em refletir sobre o que não está catalogado por uma métrica clara, de “mais” ou de “menos”, típica de extremos. É um universo com tantas nuances de reflexão, que com ele nos assustamos. Então recuamos aliviados, como um comandante que resgata o controle de seu navio depois de uma tempestade. Somos treinadas para decisões fáceis, irrefutáveis. No espectro desconhecido das opções do meio é diferente: a indecisão é maior e as opiniões – de pessoas que também evitam refletir sobre o meio – brotam e perturbam sem parar. Os desafios da inclusão e da diversidade estão no meio. Em quem tem uma pele não totalmente branca, rosada, preta ou marrom. Em quem as vezes é triste e às vezes alegre. Em quem é bom para determinado esporte, mas erra tudo no outro. Em quem tem um olho que tudo enxerga e o outro que nada enxerga – neste caso, seria uma pessoa com deficiência? Em quem está em transição de gênero. Em quem ama mulheres e homens sem impor a si mesmo uma ordem no afeto. Em quem disfarça se é velho ou novo, impondo a quem se importa uma meia-idade indecifrável. Testar as possibilidades do meio irá tornar mais saudáveis e menos competitivas as relações em família e na escola. Se os extremos são tóxicos, proponho considerar o meio como um espaço sagrado para se educar as novas gerações. É exercício novo, sem regras claras nem sinapses constituídas. Felizmente, a plasticidade está a nosso favor. Publicado na revista Pais&Filhos em setembro de 2021 PÁG. 42 Ucrânia é nome feminino. Clitóris, masculino AD: Uma bandeira branca flamejante, com o símbolo feminino – representado por um círculo de onde sai uma cruz voltada para baixo. FIM DA AD Desigualdade é palavra feminina. Igualdade e equidade também. Gênero é expressão masculina. Empresa é feminina. Instituição é feminina. Corpo é masculino. Inclusão é feminina. Trabalho é masculino. Trabalho inclusivo é masculino. Mas inclusão é transformação. Revolução: não binária e sistêmica. No feminino!!! O sistema pode ser masculino ou feminino. Fluxo sistêmico, ciclo sistêmico, revolução sistêmica. A gente é livre pra decidir. Mundo. O que é? Masculino. Existem opções: sociedade e Terra. A Terra é mulher, claro! E nós a destruímos. E se mudarmos para outro planeta? Ora, a destruição permanece. Destruição é uma forte expressão – feminina. Feminino é estruturante? Virou opcional. Feminino secundário. Feminino universal. O feminino se sobressai nas expressões que representam tragédias? Guerra da Ucrânia. Massacre da Rússia. Morte, morte e mais morte. Arma é palavra feminina! Surra é palavra feminina! Prisão é palavra feminina! Dor é feminina! A menstruação é feminina. Absorvente? Não. Clitóris é masculino! Luta é feminina. Luto é masculino. Queimadura é palavra feminina! Choque, masculino. Controle, masculino. Tapa também! Governança é feminina. Social é masculino. Governo é masculino. Brasil é masculino. Ucrânia é feminina. Sociedade é palavra feminina. Amor é masculino. Mentira é feminino. Multiplicidade é feminino. Invenção é feminino. Ovário é masculino! Útero é masculino! Vagina é feminina! Pênis é masculino. O saco escrotal é masculino. Próstata é feminina! Trompas são femininas. Ah, mas têm o Falópio! Coragem é expressão feminina. Bom. Bora continuar. Dia Internacional das Mulheres. Publicado no portal ECOA-UOL em março de 2022 PÁG. 43 A exclusão (des)naturalizada AD: Uma versão do cubo mágico, que aparece com três faces. No lugar de cores, nove rostos de perfil de cada lado, todos voltados para a direita. São de diferentes idades, tipos físicos, etnias, gêneros e estilos. FIM DA AD Estar em confinamento permanente sem ter cometido crime. Acontece com várias pessoas no sistema prisional. Mas também é a vida de grupos historicamente excluídos, como pessoas com deficiência. Confinamento não pelo que se alega que fizeram, mas apenas por seu modo de existir. Com a pandemia covid-19, pessoas historicamente reféns constantes de um isolamento físico e comunicacional imposto pela sociedade passaram a acompanhar a população brasileira descobrir como dói perder a liberdade, ainda que temporariamente. Para quem tem deficiência, o confinamento associado à pandemia covid-19 teve impacto menor sobre a rotina. Houve agravos à saúde física e mental, com suas múltiplas consequências, mas a perda de liberdade em si já lhes era, infelizmente, familiar. Pessoas com deficiência estão sem autonomia e independência faz tempo. E ainda se espera que agradeçam por cada migalha de direito oferecida, quando, por exemplo, uma determinada lei que existe há décadas é minimamente cumprida. Se não demonstram gratidão, são rotuladas de pessimistas ou radicais. Neste início de século – e nos últimos séculos – não se tem registro de comoção nacional, lives, webinars, debates virtuais, disputas políticas e partidárias entre poderes e contrapoderes pedindo urgência para acabar com o confinamento cultural, econômico e social de pessoas com deficiência. Esperava-se que o cenário fosse mudar após a pandemia. Não aconteceu. Ao enfrentar por anos algum tipo de isolamento por conta da pandemia do novo coronavírus, a população brasileira descobriu o que pessoas com deficiência sabem e têm tentado revelar: o confinamento não apenas chateia, preocupa e cerceia o lazer, o afeto, os ganhos econômicos e financeiros. Há outras dimensões. É muito exaustivo e perigoso viver sem acessar direitos. Sem exercer direitos não se vive, se sobrevive. Independentemente dos riscos à saúde que a covid-19 e outras doenças contagiosas trazem, pessoas com deficiência convivem com um risco à saúde perpétuo, causado por um confinamento perpétuo. Essa condição é produto de múltiplas causas que são também sociais, como a falta de acessibilidade física de qualidade em hospitais públicos e privados, e os estigmas associados à deficiência, ainda que venham disfarçados em carinho e elogios. É por isso que a expressão “superação” é utilizada com extrema frequência em reportagens sobre pessoas com deficiência. São transformadas em heroínas, ainda que não tenham feito nada demais. Péssima compensação. Tentativa de aliviar a culpa, momentaneamente. Nada mais. Diante das dificuldades enfrentadas por grupos excluídos, como pessoas com deficiência, a sociedade até tenta, mas nem sempre se posiciona adequadamente. Como rotina, abandona a opção de se tornar uma agente defensora e promotora do acesso a direitos humanos e fundamentais, trazendo para si a responsabilidade de se envolver na busca de soluções diariamente, e opta por algo mais visível e mais simpático. Aposta em dar tudo de si, mas duas a três vezes por ano, em datas festivas – as efemérides –, do abraço às doações financeiras, passando, claro, pelas postagens em redes sociais. Por isso, hoje, as barreiras atitudinais não se manifestam mais por meio de “nãos”, palavras preconceituosas ou condutas agressivas. Ao contrário, a sociedade mudou o seu modo de discriminar. Prefere negar direitos alegando amor e proteção. Além do estigma e da ausência de acessibilidade física para que pessoas com deficiência possam sair de casa, circular pelas ruas e usar transportes públicos, o maior dano à saúde física e mental de quem vive neste perpétuo confinamento é não ter acesso à informação. Informação para se proteger de qualquer epidemia ou perigo iminente, informação para saber o que está acontecendo no país e no mundo. Informações básicas para qualquer pessoa tomar decisões autônomas, e que são negadas a pessoas com deficiência. As formas de comunicação a que estamos habituados no dia a dia, ao mesmo tempo que informam, embalam todo tipo de discriminação em relação a quem não ouve, não enxerga, não sabe ler ou não consegue entender o que as notícias dizem. Para além de medidas básicas de acessibilidade, contribui para essa exclusão a própria arrogância do texto escrito ou lido, transbordante de metáforas, conclusões complexas e chavões considerados “de uso comum”. Falta linguagem simples, legenda em tempo real, audiodescrição e Libras em toda a comunicação presencial e virtual, e não apenas por parte do Brasil, mas do mundo, incluindo as Nações Unidas. A pandemia covid-19 deixou cicatrizes. E tornou pública e democratizou um pouco, no saber e no sentir, a dor, o medo, a insegurança, os riscos e os danos envolvidos em se acordar todo dia sem saber quais direitos vai acessar. Sem saber se e como poderá usufruir da informação à locomoção, do saneamento ao lazer, do alimento à segurança. A pandemia passou, mas o cenário não mudou. Naturalizar a exclusão, de qualquer tipo, é naturalizar uma calamidade pública. Inspirado em artigo publicado no portal ECOA-UOL em abril de 2020, revisto pela autora PÁG. 46 Infância nas eleições AD: Três teclas alinhadas, duas quadradas em cima e uma retangular embaixo. Na tecla superior esquerda, o rosto de uma menina branca de cabelos curtos e lisos, penteados para o lado. Na outra, um menino negro de cabelos cheios. Estão sorridentes e aparecem dos ombros para cima. Abaixo, na tecla retangular, está escrito “CONFIRMA”. FIM DA AD Quais sentimentos definem sua relação com a infância? Antes de responder, conheça as instruções: 1) não pense em uma criança que você ame; 2) nem naquelas que vivem em regiões empobrecidas e devem estar agora sem calçados, com muito frio ou muito calor, talvez com fome e sede, talvez abandonadas e próximas da morte; 3) ignore a infância dos comerciais; 4) e as crianças que tenham rara beleza ou inteligência; 5) ou alguma deficiência; 6) ou uma doença rara que te pareça apavorante e te comova; 7) se você é profissional da educação, não se mobilize por seu cotidiano nas salas de aula com alunas e alunos; 8) se você é profissional de saúde, não relembre bebês e jovens pacientes nas emergências de clínicas e hospitais; 9) apague da memória uma criança que tenha visto há poucos minutos pedalando na rua, feliz, numa bicicleta toda colorida com farol e buzina; 10) não se apegue à imagem de crianças que mexam com você emocionalmente pela cor da sua pele, fisionomia, altura, modo de falar ou qualquer outra característica – porque isso significa que seus preconceitos estão ativados, o que não é bom; 11) esqueça, por fim, todas as crianças que passaram por você nas últimas horas em fotos e vídeos nas redes sociais, te encantando e te divertindo com proezas de precocidade inigualável. Não sobrou criança? Natural. Acontece porque não conseguimos mais perceber a infância real, aquela que não se esgota nos exemplos acima e inclui crianças que não nos mobilizam. Simplesmente passam por nós despercebidas. Ou seja, na prática, não existem. O mundo adulto tem um hábito nocivo de rotular as crianças, atribuindo-lhes notas de aparência, aptidão, interesse. Ainda que considerados bons, como o de “criança mais comportada” da turma, todos os rótulos apequenam a infância, reduzindo-lhe o potencial e o futuro. Não é a capacidade ou o modo de chamar a nossa atenção que define a importância da criança, diz a Constituição. Crianças não somem do cotidiano e do pensamento das pessoas adultas simultaneamente e na mesma intensidade. Varia muito. Quais são os grupos de crianças que você esquece? Instituições e políticas públicas também se distanciam muito de algumas infâncias. Pois é justamente esta criança sumida que buscamos. Ela não está nos cartazes de “procura-se” ou “desaparecida”. O sequestro se deu – e se dá endemicamente – no íntimo de cada pessoa que daqui a alguns meses vai votar para a presidência do Brasil. Buscamos com urgência esta infância que o imaginário social não consegue mais captar, esquecida por nossos corações e mentes, que adoram funcionar a partir de estigmas – bons e maus, definindo qual criança vai nos assustar ou tranquilizar, nos divertir ou preocupar. Ainda que sumida do nosso alcance cotidiano, essa criança sumida é real. E, como todas, depende do cuidado e da proteção de pessoas adultas para sobreviver. Ainda estamos muito distantes da criança e do adolescente descritos no artigo 227 da Constituição Brasileira, o que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Para o ECA e o artigo 227 da Constituição, nenhuma criança que habita as nossas fragmentadas imagens cotidianas da infância existe de verdade. São apenas fragmentos da infância. O ECA repudia estereótipos de crianças. O ECA não escolhe crianças. O ECA é para toda e qualquer criança. Ainda que eu me esforce muito, nunca conseguirei sozinha defender os direitos da infância previstos no ECA. Ainda que a organização que fundei em 2002, a Escola de Gente - Comunicação em Inclusão, se empenhe muito, jamais conseguirá sozinha proteger integralmente a infância que está no ECA. Ainda que a Rede Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência, rede da qual faço parte, defenda que a infância brasileira é o principal sujeito de direitos, será pouco. Qual a solução para tanta frustração? Buscar novas estratégias de ação e força. Por isso nasceu a Agenda 227, um movimento de 150 instituições da sociedade civil, como a Escola de Gente, liderado por 18 delas e idealizado pelo Instituto Alana e a ANDI. O objetivo da Agenda 227, que atua de forma suprapartidária, é trabalhar para colocar os direitos da infância no centro do debate eleitoral presidencial. O modo como quem vai disputar a presidência do Brasil se refere à infância, com suas origens e especificidades, diz muito sobre seus planos de governo. E esta é a leitura crítica que a sociedade precisa aprender a fazer para votar melhor. Votar pela infância que existe, tantas vezes violada e massacrada, ainda que enaltecida e amada. O mundo adulto ama e discrimina, tudo ao mesmo tempo. Situação agravada pela desigualdade social e outras vulnerabilidades sistêmicas, como discriminações estruturais e capacitistas. Convido organizações da sociedade civil que atuam com assuntos relacionados à infância, e isso inclui todos, como clima e ambiente, nutrição, trabalho, direitos humanos, gênero, saúde, entre outros que atravessam o universo infantil direta ou indiretamente, a aderir à Agenda 227, neste link: https://agenda227.org.br. Devolver à infância o seu lugar central na construção, aperfeiçoamento e monitoramento das leis, das políticas, das pautas nos meios de comunicação e no modo como a sociedade reage ao cotidiano, é o modo que eu escolhi para necessariamente vencer as eleições presidenciais em 2022. Alguém conhece outro? Publicado no portal ECOA-UOL em junho de 2022 PÁG. 49 Aspas nunca mais AD: Entre enormes aspas pretas, uma caixa de papelão com as abas abertas tem dentro três ícones de pessoas do peito para cima, ao centro. Elas não têm face nem cabelos. FIM DA AD Decidi não usar mais aspas. Não me refiro às aspas que utilizamos para delimitar trechos originais que estejamos citando. Falo daquelas que aplicamos, por escrito e em especial com as mãos, para sinalizar uma posição – cautela?, ironia?, respeito? – sobre uma expressão ou uma palavra nossa mesmo. Não é simples. Aspas têm sido úteis no decorrer da minha vida. E, imagino, na de inúmeras pessoas também. Na escola, ao usá-las pela primeira vez numa redação, provoquei até emoção na professora. Ganhei elogios. Coisa que nunca se esquece. Apenas nos últimos dias ecoou dentro de mim um alerta sobre o uso das aspas, e foi a partir da fala do ministro da Educação, Milton Ribeiro, numa entrevista na TV sobre inclusão. Só então me dei conta de que esse sinal gráfico em forma de pequenas alças – como as aspas são descritas nos dicionários – é de uso arriscado, enganoso e potencialmente danoso. Seu uso, hoje deduzo, não é tão inofensivo. Utilizar aspas em uma palavra ou expressão não significa perdão ou redenção. É falso, também, dizer que amenizam o próprio conteúdo ou impacto dessas expressões. Ao contrário, todo pensamento escrito, sinalizado ou falado “entre aspas” vale mais ainda, e por duas razões. Primeiro: usar aspas é uma escolha consciente. Não decidimos abrir aspas pela ameaça de um revólver na cabeça, por chantagem emocional ou financeira. Palavras e expressões entre aspas são selecionadas com autonomia e independência e, assim, refletem e registram opiniões e intenções. Segundo, ao usar aspas, a pessoa faz uma denúncia de si mesma. Algo do inconsciente humano vive precisamente entre o abre aspas e o fecha aspas. Ao utilizá-las, revelamos um pouquinho do que habitualmente escondemos ou contamos só pela metade, devagarinho, de modo a ir calibrando a reação da sociedade, de quem amamos, qualquer pessoa ou grupo que nos afete. Quando o ministro da Educação declarou nas mídias sociais que “crianças com deficiência atrapalham”, fez questão de fazer o sinal de aspas com os dedos de ambas as mãos (no “atrapalham”). Possivelmente, pensava que as aspas iriam amadrinhar seu pensamento, até porque acrescentou que assim se expressava com muito cuidado. Foi então que me debrucei sobre as aspas, vasculhando dicionários para saber como as definem, tanto as aspas duplas quanto as simples – estas são utilizadas quando a citação já está dentro de outra citação, que, portanto, já tem aspas. Além de distinguir trechos de documentos autorais, títulos, nomes comerciais, as aspas servem para salientar palavras ou expressões especiais, sentidos figurados, gírias etc. Ou seja, não escondem nada: vêm, por natureza, revelar, consagrar – um certo sentido que procuramos escolher, controlar ou enfatizar, mas que escolhemos. Aspas não são disfarces. Voltando ao ministro da Educação, gostaria que ele se unisse a essa reflexão. Quando falamos que alguém atrapalha fazendo aspas com as mãos, o que queremos dizer exatamente? Que sabemos que essa não é a palavra adequada, mas pedimos antecipadamente desculpas por usá-la? Ou que estamos usando cientes que ela tem implicações perigosas? Mas fazer isso é afirmar essas implicações. Como acreditar que as aspas podem ser usadas para não dizer alguma coisa que escolhemos dizer? Nessa aventura pelos dicionários decifrando as aspas, encontrei algumas expressões interessantes relacionadas a elas que desconhecia. Escolhi algumas para terminar este artigo. Fico de “aspa torta” (mal-humorada e zangada) quando o conceito de educação inclusiva é tratado de modo inconsistente, mas nem por isso vou desejar que as pessoas que não concordam comigo “finquem as aspas no inferno” (morrer, referindo-se a inimigos e desafetos). Prefiro, ao contrário, “bater aspas” (andar lado a lado esclarecendo dúvidas) e seguir defendendo a educação pública inclusiva na mesma sala de aula para toda criança, sem exceção. Não é à toa que as citações são entre aspas! Direito autoral preservado até o além. Publicado no jornal Folha de São Paulo em setembro de 2021 PÁG. 51 A violência tem berço. E nunca está sob controle AD: Sentado em uma cadeira, um menino de costas para nós, virado para a parede. Ele tem cabelos escuros e curtos, está de camiseta, calça e tênis. FIM DA AD Você dá colo e aconchego para violência (sem sangue) na frente das crianças? E, ao mesmo tempo, está perplexo com os ataques a creches e escolas (com sangue) no Brasil? Saiba que não está sozinho na sua incoerência. Aprendemos a ser incoerentes desde cedo. Já na infância somos testemunhas do quanto as pessoas adultas lidam assustadoramente bem com a contradição de serem, ao mesmo tempo, agentes e vítimas de exclusões, numa dinâmica sem fim. A exclusão é praticada pelas famílias e nas escolas de várias formas e a razão nem importa muito, isso porque uma vez que o intelecto já sabe segregar, qualquer hora é hora. Aos poucos, excluir vira um hábito. A violência se manifesta por gestos, decisões e palavras, e vira até um tipo de jogo bem aceito. O ímpeto de “desligar” alguém vem como um impulso incontrolável e no automático, com o passar dos anos. O pretexto ou fato gerador não importa. Pode ser o temperamento, a aparência, o jeito de falar ou não falar, de ouvir ou não ouvir, de andar ou não andar, o gênero, orientação sexual, a raça, o gosto por alguma brincadeira, a falta de agilidade motora, o dom pra música ou para esporte, o time de futebol, a calma ou a agitação, o endereço, a religião, a linguagem, o sotaque, a roupa, o sapato, o cabelo, uma intolerância alimentar. Há sempre um sentido pronto para justificar a exclusão – por parte de quem a pratica… Qualificar pessoas como sendo “diferentes” ou “especiais” é um exemplo dessa prática. Promove o falso aprendizado de que somos muito iguais e a diferença se localiza apenas em alguns seres humanos, como aqueles que nascem com deficiência. Esse modo arrogante de se perceber as diferenças humanas como um detalhe, ou um equívoco da natureza, e não parte intrínseca dela, vai, lentamente, validando pequenas agressões – ainda que sejam sem sangue. Em casa, a exclusão costuma vir em tom aparentemente mais leve porque, afinal, as famílias por princípio amam sua prole e seus descendentes. Acontece que o mundo adulto sabe como proteger, cuidar e discriminar – ao mesmo tempo. Pode ser um comentário, em tom de brincadeira, de que se determinada criança continuar engordando não vai mais passar pela porta das casas da vizinhança. Ou a decisão de que aquele adolescente é muito tímido e se participar de um evento qualquer, com algum destaque, na festa de fim de ano da escola pode ficar envergonhado, na hora, e estragar tudo. Ou uma escola que anuncia em voz alta as notas de prova da maior para a menor. Ou que tem turmas inspiradas nos “melhores” – e nos “piores” estudantes. Somos experts em tirar alguém da nossa vida sem alguém perceber. Discriminar pessoas em função de suas diferenças e desigualdades de qualquer natureza talvez seja, infelizmente, a primeira lição ensinada pelas famílias às crianças com o apoio da escola – e vice-versa. Muitas das pessoas que hoje praticam a violência que tanto nos assusta viveram histórias pessoais de alguma exclusão, como vítimas ou algozes. Como educar sem naturalizar qualquer ato de exclusão? Ainda que pouco explícito e inconsciente, o desejo de segregar nos fortalece para outras violências, como para outros tipos mais explícitos de extermínio, de algum tipo de extermínio – já com sangue. E, novamente, qualquer razão serve. Acreditamos que a educação de nossas crianças está sob controle. Mas não, a violência nunca está sob controle. Ainda assim acredito que seja um caminho com volta. Nessa direção, tenhamos mais cuidado, por favor. A eliminação por meio da morte é apenas o “laço de fita” que, tenebrosamente, embrulha para “presente” experiências de exclusão sentidas e/ou praticadas desde o início de nossas vidas. Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2023 PÁG. 52 Que tal deixar as crianças brincarem em paz? AD: Visto de costas em meio a um caminho gramado, um garotinho corre adiante a empinar uma enorme pipa losango, com fitas nas pontas laterais. Ele tem cabelos escuros arrepiados, usa um moletom com capuz, calça e tênis. FIM DA AD Somos, muitas vezes, pessoas insensíveis, arrogantes e autoritárias diante da infância. Por quê? Talvez por conta daquela antiga crença de que corpos pequenos têm menos direitos do que corpos grandes. Essa inversão de valores se manifesta no modo como o mundo adulto lida com o brincar, principalmente da primeira infância. Buscamos um objetivo adulto no brincar infantil. Não há. Sozinha ou com outras crianças, o brincar surge sempre delas; e, para esse banquete de prazer, às vezes somos convidadas; outras vezes, não. Ao aceitarmos o convite para participar daquele brincar, sejamos pessoas bem educadas: nada de mudar o cardápio de um banquete já em andamento. Para a criança, a mensagem que fica é clara. O jeito dela brincar está sendo rejeitado ou, no mínimo, criticado. Daí, a infância costuma agir de dois modos: ou aceita a imposição do mundo adulto e é considerada uma criança colaborativa e dócil; ou reclama, não aceita as sugestões e até interrompe a brincadeira. De todo modo, o pedido da criança é: “Deixa eu brincar do meu jeito?”. Pessoas adultas acham lindo, comovente e confortável observar uma criança brincando sozinha – mas logo se coçam todas por dentro. Como se estivessem sentadas num formigueiro, vem o ímpeto de transformar todo aquele prazer num aprendizado qualquer. Querem intervir de algum modo. O carrinho tem as rodas viradas para cima e o sol está sendo pintado de azul. Quem aguenta assistir a uma cena dessas sem ensinar que o carrinho deve ficar com as rodas pra baixo e que o sol não é azul? A criança pequena está ali, deliciando-se com o seu jeito próprio de se divertir, mexendo aleatoriamente nas teclas do piano e achando sua musicalidade linda; ou criando novas regras para as cartas de um jogo da memória, ignorando, portanto, todas as orientações tradicionais de como usá-las. Seu brincar está perfeito, porque todo brincar infantil é perfeito, ainda que para nós não tenha qualquer graça ou sentido. Diante da placidez da cena do brincar da primeira infância, o que sentimos? E se formos convidadas a entrar neste brincar, aceitaremos seguir as regras da criança? Ou apenas fingiremos aceitá-las para logo lhe ensinar o “correto”? Por que brincar sempre parece pouco? De onde vem a urgência adulta em invadir aquele momento para lhe agregar o que seria um suposto valor? A incidência do julgamento adulto é tão ativa em relação à primeira infância que quando se invade um brincar para forçar um aprendizado e a criança o aceita, vem um sentimento de conquista, de reino dominado. Mas, ao contrário, se a “lição” não dá certo, há uma tendência natural de se avaliar aquela criança. Birrenta, desinteressada ou com algum transtorno no seu desenvolvimento? Encontrei por aí a expressão “brincar funcional”. A ideia de comentá-la neste artigo veio de uma conversa com Alice Melo, profissional que então atuava na Escola de Gente, ONG de direitos humanos e inclusão. Alice me alertou para o quanto crianças com deficiência têm sido muito prejudicadas no seu ato de brincar. Para a infância com TEA (Transtorno do Espectro Autista), o brincar deve ser sempre o “brincar funcional” porque, segundo especialistas na internet, essas crianças não sabem brincar sozinhas, precisam ser ensinadas a brincar. Fiquei intrigada com essas informações. Como alguém que já é grande vai ensinar alguém pequeno a brincar? Aqui me refiro ao brincar original que perdemos muito cedo de nossas vidas. Certamente, algo dele permanece na criança que vive em nós até a velhice. E talvez seja justamente esse brincar puro vivenciado na primeira infância o alimento nosso de cada dia, até a morte. Acredito que temos saudade desse brincar autônomo e prazeroso de quando tínhamos 2, 3, 4 anos, e que nos protegia do que intuitivamente sabíamos que viria: o aprendizado incessante e arriscado do mundo adulto, com suas infinitas regras e imposições. Talvez o ímpeto de “aprimorar” as brincadeiras infantis seja pura inveja do que já fomos um dia. Hoje, pessoas imersas e submetidas aos insumos de um mundo exógeno, não aceitamos a felicidade do brincar infantil – tão íntimo, primário, tosco, sem sentido e… extremamente divertido. O brincar da criança não tem pressa, num tempo guiado pela pressa. O brincar da criança não tem objetivo, num mundo guiado por metas e resultados. O brincar da criança nunca é violento, numa sociedade cada vez mais agressiva. O brincar da criança é necessariamente inovador, num mundo que diz gostar de ousar, mas que é apegado a ideias antigas, que renomeia e reajeita de vez em quando. Que consigamos deixar as crianças brincarem em paz. Cada criança brinca do jeito dela. Um jeito que muda todo dia. E isso não quer dizer que em outras situações da vida não tenham que seguir regras orientadas por pessoas adultas. Publicado na revista Pais&Filhos em março de 2023 PÁG. 55 Lembra deles? E delas? AD: Quatro jovens sentam-se lado a lado em uma mureta. Usam camiseta, calça e tênis, mochilas às costas e seguram livros sobre as pernas. Da esquerda para a direita, um rapaz negro de cabelos arrepiados usa óculos de grau e casaco; ao lado, uma garota loira de cabelos lisos e curtos, uma jovem negra de cabelos crespos volumosos e um rapaz negro de pele mais clara com cabelos bem curtos, que está de jaqueta. Todo o grupo está sorridente. FIM DA AD Amizade feita na escola é para sempre. Pelo menos, na memória afetiva. Dedicamos quase duas décadas de nossas vidas à rotina dos uniformes, deveres de casa, das provas... E o que afinal fica dessa vivência quando nos tornamos pessoas adultas? Pouco do conteúdo aferido nos testes que nos davam a glória de passar de ano – ou não. Bastante das brincadeiras no recreio, das festas e das transgressões cometidas na hora da aula sem que a professora desconfiasse de nada. Mas a melhor recordação da escola são os amigos e as amigas. Ah, a amizade! Até hoje, lembro-me bem dos talentos e das limitações, e também das personalidades, daqueles que dividiram comigo, por um ano letivo, ou mais, a mesma classe. Se hoje eu fosse convidada a ser ministra da Economia, por exemplo, saberia exatamente quem chamar deste grupo para me assessorar em cada detalhe. Neste Ministério da Economia, gostaria que meu braço direito fosse a Cleonice. Ágil, empreendedora, estudiosa, uma financista nata. Poupava cada centavo ganho para comprar lanche na cantina, controlava a mesada como ninguém. O dinheiro dela dava para tudo. Jamais cedia a tentações de natureza consumista. Organizada, ai de quem alterasse a ordem dos livros e dos discos dela na estante de sua casa. Agora, eu jamais chamaria a Cleonice para trabalhar comigo em uma situação que exigisse jogo de cintura, flexibilidade, domínio e prazer nas relações humanas. Seria um fiasco. Minha amiga tinha pavio curto. Gosto de recordar-me das amizades do maternal ao vestibular. Posso revivê-las em detalhes. Tenho boas e más lembranças, o que é ótimo. Reflete o quanto a criança, intuitivamente, se exercita e se articula eticamente no ambiente escolar. Desenvolve visão crítica. Mesmo o grupo de crianças menos chegadas deixou em mim certa marca. Lembro-me de quem lia bem, recortava ou desenhava mal, das mais gulosas ou desinibidas, da menina que ainda fazia xixi na calça mesmo grande, das boas no esporte, daquelas que tinham o hábito de mentir, de não pagar o dinheiro pedido emprestado. E ainda de quem tinha asma e vivia perdendo prova. Ou tinha coceira na perna que nunca cicatrizava. Também do menino que se destacava no coral e no grupo de percussão e hoje é cantor lírico – soube recentemente. A menina que fumou o primeiro cigarro entre nós será para sempre uma espécie de heroína marginal no meu coração. Havia outra que sabia tudo (errado) sobre sexo. Uma de minhas amigas tinha um namorado firme que morava em outra cidade e nunca o traiu. Revi recentemente a Nilda, que fazia as provas de matemática correndo e as entregava antes que eu começasse a ensaiar o primeiro dos cálculos, deixando-me com uma inesquecível sensação de ser muito, mas muito lenta. Com detalhes recordo-me das crianças cujos pais ou mães haviam morrido cedo. E daquela menina cuja avó usava a dentadura mais feia que eu já vira. Conto tudo isso para pontuar que, mesmo sem ter revisto durante a vida a maioria desses amigos e dessas amigas, é viva a sensação de que o tempo todo estivemos juntas. E cada vez que, por um motivo ou outro, revejo alguém, a situação me toca profundamente e me emociono imediatamente: vem logo a lembrança do dia em que realizamos algum trabalho de grupo ou trocamos cola em certa prova. Das vezes em que eu podia ajudar. Das vezes em que eu precisava de ajuda. Somos e seremos cúmplices. Porque frequentamos a mesma escola. E as crianças da minha comunidade que não puderam estar na escola? Que não foram convidadas a participar dessa festa? Que referência tenho hoje delas? Como sentir-me cúmplice de suas dificuldades e de seus sonhos? De que jeito reconhecê-las como parte do meu TODOS afetivo? Do TODOS social, político, econômico, cultural e humano do meu país? A escola, dizem os documentos internacionais de educação, deve ser o local de encontro universal de gerações. E resistamos à tentação de reduzir o significado do vocábulo universal. Universal quer dizer de TODOS. De TODOS, mesmo. Incluindo múltiplos gêneros também. Criança que não vai à escola fica sem futuro. E não é apenas porque não se alfabetiza ou não tem acesso à educação. É porque, principalmente, deixa de fazer parte da memória afetiva e dos planos das pessoas com quem vai dividir a responsabilidade de construir e dignificar sua nação. Instituições de ensino em que não cabem TODOS os modos de se ser um ou uma estudante, incluindo crianças com deficiência de qualquer natureza, podem até ser muito boas, mas ainda não são escolas. Publicado no jornal O Popular, de Goiânia, em janeiro de 2000 PÁG. 57 A covid-19 reforçou a desigualdade brasileira AD: Rosto de um senhor idoso negro, de barba e cabelos grisalhos, com entradas. Uma faixa branca de tecido amarrotado cobre seus olhos e boca. Ele tapa os ouvidos com as mãos. FIM DA AD As pessoas só morrem de fato uma vez. Antes disso, podem até se sentir como se estivessem mortas, múltiplas vezes. Não dá pra saber o impacto dessas mortes simbólicas na vida de quem continua vivo. Mas podemos tentar quantificar o dano de se estar vivo quando o mundo te considera morto. São estudos sobre a morte em vida. Fazem particular sentido hoje, dia 22 de março de 2020, quando acaba de ser noticiado o primeiro caso oficial de covid-19 na Cidade de Deus, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, região com indicadores sociais críticos e quase 40 mil habitantes. A partir de agora, o rastro destruidor do novo coronavírus possivelmente vai na direção da pobreza e da miséria. É onde vivem mais de 80% da população com deficiência do mundo, diz a ONU. Não se sabe como a covid-19 agirá. O vírus ainda não foi testado em um país com a extrema desigualdade social do Brasil. Pessoas com deficiência vivendo na pobreza não são zumbis, mas, antes do vírus, com frequência já vinham sendo tratadas como se fossem. Agora, enquanto todos discutem o vírus, sua situação de morte simbólica só piora. Como se sentem diante da ambiguidade constrangedora de estarem vivas para si e suas famílias, mas mortas para noticiários, lives de profissionais de saúde e entrevistas com autoridades públicas sobre o novo coronavírus? O direito à informação e à comunicação vale também para a população de pessoas com deficiência vivendo na pobreza. Querem se comunicar e opinar, e precisam tomar decisões para se proteger. Para sobreviver, precisam de informação. Mas quais vídeos, entrevistas ao vivo e lives têm audiodescrição, legenda descritiva, Libras e linguagem simples? Esses são os recursos de acessibilidade comunicacional mínima garantidos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada há bem mais de uma década por quase todos os países do mundo, incluindo o Brasil. Pior: nem a própria ONU tem cumprido a Convenção no que se refere à acessibilidade na comunicação. Até as fake news decepcionam. Neste particular, estão até alinhadas com as reportagens sérias e a divulgação de pesquisas científicas. Textos de desinformação, reportagens e pesquisas científicas adotam idênticos critérios de exclusão. Nuas de acessibilidade, as fake news revelam que, assim como a comunidade científica e o jornalismo sério, não consideram como público quem não enxerga, não ouve, não sabe ler ou não entende a linguagem rebuscada dos meios de comunicação sobre como se proteger da covid-19 e sua letalidade de proporções inimagináveis. Diante de um desastre humanitário, como vivemos hoje, o hábito de se negar informação a quem não sabe ler, não consegue mais ler, não ouve ou não enxerga por qualquer razão se mostra em toda sua morbidez. E ataca também crianças, idosas e idosos, pessoas com transtornos de saúde mental ou que, por conta de um acidente, não têm autonomia motora para ligar a televisão ou segurar telas de qualquer tamanho. A informação e a comunicação sustentam e protegem a conexão entre pessoas e grupos nas sociedades e por isso dão tanto poder. Estar sem acesso à informação é estar sem poder. É viver em desvantagem, é morrer todo dia, é viver se fingindo de morto. A sociedade da informação não tem registro de quem não se expressa. No início, não te dá informação. Em seguida, não quer a sua informação. Depois, não quer nem a sua opinião. Quem não é público-alvo da comunicação deixa de ser público. Nas tragédias, o mundo repete com mais vigor o que ele já faz todo dia: mata. Por isso, a sobrevida nas grandes tragédias não tem sido apenas questão de sorte, saúde e riqueza. É também um desdobramento de decisões mais ou menos adequadas, tomadas em outros momentos, cujos efeitos se reforçam na crise. Quem não tem acesso a conteúdos que circulam entre outras pessoas da mesma sociedade e comunidade religiosa, de vizinhança, bairro ou família fica em vulnerabilidade crescente. A covid-19 reforça essas vulnerabilidades, mas não as inventou. Fomos nós mesmos – com essa mania de matar todo dia. Publicado no portal ECOA-UOL em março de 2020 PÁG. 59 Ainda dá tempo? O interrompido sonho de futuro AD: No monitor de um notebook, quatro bananas de dinamite enroladas, com um temporizador acoplado. FIM DA AD Talvez resida na contradição expressa na convergência entre continuar correndo nas redes virtuais, ainda que imobilizado em casa, um jeito de não enlouquecer. Parar o tempo. Voltar no tempo. Avançar no tempo. Três desejos associados à felicidade que até foram realizados pela covid-19, mas como tragédia. O ser humano sonhou errado? A humanidade é ambígua ao se relacionar com o tempo. Na prática, vive o presente. Na fantasia, adora o passado. De verdade, só pensa em antecipar o futuro. Era assim. Mas mudou com a covid-19. Como um hacker, o confinamento associado à longa pandemia foi desconfigurando o algoritmo do psiquismo humano logo nos primeiros dias e meses: mais de 600 mil mortes, mais de 500 dias e toneladas de dor, raiva e frustração depois, a saída é dar ctrl+alt+del e reiniciar a relação com este deus – ou deusa – chamado tempo. Exagerada, a humanidade sonhou tão intensamente com o futuro que estressou o próprio tempo, que durante a pandemia nos revelou o modelito híbrido – um tipo de tempo mais confuso ainda. Teremos saúde mental para lidar com a instabilidade que reside nele? A pandemia interrompeu o fluxo livre dos nossos desejos. Nessa medida, foi bom. Isso porque o sonho humano de controlar o tempo nunca foi inócuo. Apontava para a determinação da espécie humana em estar no controle das vidas, de todas as vidas, incluindo a vida das outras espécies que habitam o planeta, também para além da vida, na governança do legado de quem já faleceu. Nem na ficção científica isso costuma dar certo. É tudo delírio da humanidade porque o tempo sempre fluiu a seu capricho, poderoso e soberano. Mas imaginávamos que fosse sempre para a frente, na direção do futuro. Não foi. Veio o passado. Ou a nítida sensação de que voltamos ao passado. De tal modo que ainda hoje estamos entre o futuro e o passado, construindo um presente volátil e, ao mesmo tempo, permanente. Povos ancestrais marcam o tempo com fenômenos naturais dos quais participam ao vivo. Nós também. Sem aulas presenciais – decisão necessária – crianças isoladas em casa não viram, por exemplo, os dentinhos de leite das outras crianças da turma caírem. Nem tiveram a alegria de lhes mostrar suas bocas banguelas também. Um ritual da infância. Meninas que menstruaram pela primeira vez na pandemia não tiveram como compartilhar essa emoção com as amigas, ao vivo. Um ritual da adolescência. E como terá sido relacionar-se sexualmente com alguém pela primeira vez nas fases mais críticas da pandemia? Paixão, prazer, insegurança e possivelmente medos – incluindo o de se contaminar. Na pandemia, rituais naturais e auspiciosos que registram a passagem do tempo foram substituídos por outros, mórbidos, como acompanhar o ciclo de 14 dias do coronavírus de pessoas próximas. Ou o ciclo de uma intubação, com final feliz ou não. Rituais ao vivo são marcadores de tempo da vida. E tanto a vida como seus marcadores de tempo têm sido maculados desde 2020. O isolamento social e o receio da contaminação também agravaram as intolerâncias. Quem ainda aguenta se olhar no espelho? Descobri que o verbo olhar, em “olhar-se no espelho”, não é intransitivo coisa nenhuma. É transitivo: uma ação de início, meio e fim, e com complemento verbal. Olhar-se no espelho precisa ter um objetivo não narcísico ou íntimo, como sair de casa ou receber alguém. Na pandemia, olhar-se no espelho foi perdendo a graça. Abrir os armários de roupa passou a me provocar uma sensação estranha. As peças perderam a anima e, fantasmagoricamente, parecem ser de uma outra pessoa que viveu remotamente, e que não sou eu. Que aberração psíquica é esta de construir o seu próprio e indesejável museu? Um museu que ninguém visita. Passamos a dedicar mais amor aos banheiros e a verificar a quantidade de rejuntes necessários nos azulejos no box, no piso e ao redor da pia. Esfregamos com toda a força qualquer sujeirinha recém-descoberta, para depois ignorá-la de novo. Vida que segue. Vestir-se ficou automático – o esmero é só da cintura pra cima, parte que aparece nas lives. Os batons ganharam insignificância por causa das máscaras. E os sapatos novos mofaram ou deixaram de caber nos pés – cujas plantas alargaram de tanto ficarem descalços. A ortopedia vem registrando um número inédito de dedinhos mínimos fraturados por topadas em móveis. Na pandemia, todo mundo ficou mais corcunda, grisalho, careca e… perdido no tempo. A esperança? Agilizar tudo para que um futuro melhor chegue depressa. É sobretudo no mundo digital que a urgência em alcançar o futuro se manifesta. A paixão pela velocidade virtual inebria, vicia e concretiza a obstinação da humanidade em prematurar o tempo. Pessoas confinadas, ficamos ainda mais ávidas por experienciar processos que fluem com rapidez, como quando consumimos online. Temos previsão de como a humanidade irá se relacionar com o tempo após esse rewind, que drasticamente conectou passado e presente, e, como se não bastasse, estragou o futuro imediato que parecia tão promissor? Nessa direção, imagino também que o tema do idadismo se expandirá com novas reflexões relacionadas a percepções díspares do tempo entre quem é pessoa adulta hoje e as crianças nascidas em 2020 e 2021. Conflitos intergeracionais irão se agravar em casa e no ambiente de trabalho? Enfim, em qual matemática a humanidade poderá confiar, se a história parou e o tempo voltou? Cem anos não serão mais 100 anos. Podem ser bem mais ou bem menos. Busca-se desesperadamente um algoritmo novo. Evoluído o suficiente para calcular a distância temporal que, agora se sabe, é mutante. Publicado no NEXO Jornal em novembro de 2021 PÁG. 62 A vida como um eterno webinar AD: Quatro pessoas de pé, lado a lado, dois homens e duas mulheres entre elas. No lugar das cabeças, notebooks abertos e seus rostos como um esboço nas telas escuras. Estão de roupa casual: camiseta branca, blazer, calça e sapatos. Todo o grupo está com as mãos nos bolsos das calças ou do casaco. FIM DA AD A pandemia inverteu tudo. Em seu curtíssimo tempo entre nós, trocou o referencial – do presencial para o online. Abalo descomunal até para quem ficava horas jogando na internet. Antes, trabalhar, comprar e se entreter pelo celular ou qualquer outra tela era uma praticidade opcional. Agora, é obrigatório. Vale para aniversários, natais, velórios, carnavais, impeachments e beijos. “Socorro, minha vida virou uma live” é, inclusive, um bom tema para o Carnaval – virtual – de 2021. A transição foi tão abrupta que, neste exato momento, enquanto escrevo este artigo, me pergunto se não está faltando algo. Parece que, nessa virtualização excessiva, sempre está faltando algo – que nunca será encontrado. Infelizmente, a desigualdade social, explícita todo dia, não está na lista de coisas que podem ter ficado para trás. Ao contrário, parece ter sido acelerada pela pandemia. A migração para o online também é desigual. Não houve ritual de passagem do presencial para o virtual. A virada já se deu no modo velocidade acelerada, típico do online. Até a virtualidade se ressentiu – suas estruturas estão sobrecarregadas de tanta atenção. Quanto à humanidade, tornou-se duplamente refém: da covid-19 e da virtualização. Antes, éramos seres humanos presenciais com a opção do online. Agora, somos seres online com o risco do presencial. E temos que bajular e louvar cada vez mais essa rainha exigente, onerosa, esnobe e insaciável: a tecnologia. Nunca a humanidade dependeu tanto dela. Que nunca se magoe e dê defeito, é o que ardentemente eu desejo. Para mim, parece que foi ontem. Até a covid-19, éramos seres de carne e osso. Com a pandemia, tenho a sensação de que destoamos como espécie. O isolamento social foi sorrateiro quando nos apresentou esta segunda possibilidade de evolução biológica, a de uma existência quase que cem por cento online, o que significou assumirmos um novo tipo de formato, mais volátil: o formato humano tipo nuvem. A partir de agora, nem água, comida, saneamento básico e saúde boa nos manterão vivos se os backbones – que armazenam toda a informação virtual do planeta – se rebelarem. Seres etéreos no formato-nuvem são backbone-dependentes. Se essa estrutura parar, sucumbiremos. Antes da covid-19, a tradução de “backbone” era “espinha dorsal” ou coluna vertebral. Hoje, backbones são a alma, o coração, o corpo e a principal fonte de energia da humanidade, à qual nos conectamos por linha telefônica, fibra ótica ou rádio 24 horas por dia, para navegar na internet e continuar usando telas, quaisquer telas. Dessas deusas do mundo virtual hoje, também, dependemos para sobreviver. Minha vida se tornou um eterno webinar, call, live. Qual é mesmo a diferença entre esses contextos, na prática? Tudo é antes ou depois da próxima aparição online. Em breve, talvez não seja mais possível diferenciar o que é íntimo do que é público, mesmo para quem deseja nunca romper esse limite. A ponte – ou a barreira – entre o presencial e o virtual se tornará irrelevante? Dez mil lives atrás, naquele longínquo dezembro de 2019, éramos mais destemidos. A humanidade, ingênua, estava empoderadíssima. A ciência nem imaginava o poder destruidor da covid-19. O novo coronavírus agiu como uma bomba de efeito sincronicamente implacável: desestruturou a sociedade planetária e dissolveu egos. Por dentro e por fora, estamos catando estilhaços e empreendendo soluções. Que sejamos generosos, sábios, rápidos e atentos para não repetir os equívocos do passado. Além do presencial e do virtual, a humanidade não tem hoje um terceiro modo de existir – nem para onde ir. O desfecho da vida humana no planeta poderá ser trágico. Publicado no portal ECOA-UOL em maio de 2020 PÁG. 64 Infâncias são indivisíveis AD: Duas crianças pequenas sentadas dentro de uma redoma de vidro. Em volta delas, flutuam flores e borboletas. A menina é branca, de cabelos lisos presos em rabo de cavalo e franja. Usa camiseta e calça e há rosas no chão perto dela, que segura a mão dele. O menino é negro de cabelos curtos crespos, usa camiseta de manga comprida, calça e tênis; ele está com as pernas cruzadas, olhando para a menina. Perto dele, duas casinhas de brinquedo. As crianças sorriem mutuamente com ternura. FINAL DA AD Temos hesitado em ensinar às crianças que também devem proteger outras crianças. Sociedade civil e governos, ainda que alinhados com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), postergam a experiência de formar uma nova geração de meninas e meninos atenta à vida e à denúncia de experiências danosas, vivenciadas por quem compartilha com elas a experiência de ser criança naquele território físico e em idêntico momento histórico. Gerações são conjuntos indivisíveis. Crianças, juntas, na escola, devem testar desde cedo sua ética. Isso inclui descobrirem juntas o quanto podem ajudar e ser ajudadas, num exercício mútuo e sistemático de empatia e de ação. Três histórias: Primeira - Há muitos anos, vi uma adolescente se engasgar seriamente na praça de alimentação de um shopping no Rio. Seu namorado, também adolescente, ficou atônito, gritou, e algumas pessoas se levantaram para ajudar. Mas não foi necessário. Rapidamente, uma adolescente que estava em outra mesa correu para a jovem e lhe aplicou com destreza aquela famosa manobra, liberando então o pedaço de sanduíche que causava o engasgo. Impressionada com o modo como aquela adolescente ajudou a outra, perguntei: onde você aprendeu isso? Na minha escola, ela respondeu, tínhamos aula de primeiros socorros todo dia (ela havia estudado em outro país, me explicou). Segunda - Quando eu tinha 10 anos, minha prima, de 8 anos, me salvou de ser abusada pelo nosso professor de natação do clube perto de casa. Ainda que ele pedisse – primeiro muito gentilmente, depois, energicamente – para que minha prima nos deixasse a sós, ela não arredou o pé por horas, já que estávamos apenas nós três e ele me encurralava nos halls dos edifícios do quarteirão onde morávamos, no Grajaú. Décadas depois, ela relembra: “eu não sabia o que ele queria fazer com você, mas sabia que deveria impedir, porque via o desespero nos seus olhos”. Paralisada, eu não falava nada. Terceira - Por fim, na noite do dia 24 de dezembro de 2022, na cidade de Guaratinguetá, em São Paulo, um menino de 10 anos pulou na piscina para salvar o irmão de três, que nela havia caído. A criança foi mais rápida do que qualquer pessoa adulta ao redor. O vídeo teve milhões de visualizações em toda a mídia nacional. Crianças devem ser protegidas prioritariamente por pessoas adultas e instituições, prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas isso nem sempre acontece em tempo hábil – por maldade, ignorância ou diversas outras razões. Daí ser fundamental dar informação e fomentar nas crianças o sentimento de que podem, também, se proteger e às demais crianças. Educar nessa direção seria responsabilidade das famílias, da escola, de projetos sociais que têm como foco a infância e dos governos. A infância é educada como um grupo coeso para lidar com os abusos – não apenas sexuais – e os ataques agressivos do mundo adulto? Como as crianças agem diante de acidentes, se estão sozinhas? São incentivadas a agir diante de um perigo, ainda que familiares ao seu redor não vejam o perigo – como no caso do menino que salvou o irmão menor caído na piscina? São rápidas nas decisões ou esperam um sinal de pessoas adultas sobre o que fazer? Salvar vidas. Entendo que esse possa ser um objetivo na formação de crianças, dando-lhes detalhes de qual pode ser o seu papel, ainda que limitado, para proteger a integridade de cada geração. Uma criança com asma pode até morrer se, no recreio da escola, for instigada a correr num dia de crise, por exemplo. Uma criança com alergia alimentar grave terá problemas sérios de saúde se, numa brincadeira, for sugestionada ou intimidada a comer o que lhe faz mal. No caso de engasgos, não seria muito interessante e útil que toda criança pudesse aprender a agir diante do acidente e impedir que algo grave acontecesse? Temos receio de falar de morte. Consequentemente, de falar sobre como preveni-la. Infelizmente, somos muito tímidos em nossa capacidade de educar crianças na direção desse tipo inestimável de ajuda e proteção mútua. Famílias, escolas, projetos sociais, conselhos tutelares, conselhos de direitos, ministério público, empresas, organizações internacionais e governos precisam entender que formar gerações aptas a praticar a intraproteção é um tema de direitos humanos. Publicado na revista Pais&Filhos em fevereiro de 2023 PÁG. 66 O gato comeu sua língua? AD: Em um caminho com árvores ao fundo, uma menina de cabelos longos cacheados em rabo de cavalo anda de skate elétrico de mão dada com um senhor grisalho de barba e corpulento. Estão sorrindo em cumplicidade. Ele usa óculos de grau e ambos estão de casaco sobre camisa branca e calça comprida. FIM DA AD Acabaram de nascer e logo são acarinhadas por corpos grandes com rosto melado de cremes antienvelhecimento, de textura e cheiro variados. Como crianças recém-nascidas lidam com este estranho input precoce? Será que essas percepções ficam guardadas em algum tipo de memória sináptica, atordoando-lhes para sempre o olfato e o tato? Não somos de vidro, que leva até um milhão de anos para se decompor. Nosso DNA combina oxigênio, hidrogênio, carbono e nitrogênio com dezenas de litros de água. É matéria-prima finita e bastante perecível. Ao contrário do isopor e do plástico, rapidamente se desgasta – ainda em vida. Desde os 20 e poucos anos envelhecemos, como prova o metabolismo. Quem nasce, cresce e envelhece. Morrer e envelhecer: são as opções que a vida dá. Pessoas muito jovens morrem. Pessoas muitíssimo velhas também. Existe a morte por velhice, sem relação com doenças. Há mortes instantâneas e inesperadas, em função de acidentes. Mas não há envelhecimento instantâneo. Ou inesperado. O envelhecimento é um processo contínuo. A sociedade, no entanto, tem se dedicado a neutralizar a consciência do envelhecimento, fingindo que ele ou não existe ou começa repentinamente aos 50, 60 ou 70 anos. Dorme-se jovem. Acorda-se velho. Ilusão. Este salto quântico não existe. O estigma do envelhecimento também se estende a especialistas da infância e a famílias. O que contam sobre envelhecer para as crianças? Temos estudado como melhor abordar, na infância, o assunto “morte”. O envelhecimento, não. Consequência, talvez, da força disseminada e deplorável do etarismo – a discriminação de pessoas mais velhas por considerá-las de menor valor para a sociedade. Como notícia, não dá para esconder de uma criança a morte de alguém que ela ame muito ou com quem conviva diariamente. Mas dá para esconder o envelhecimento. É claro que elas notam a pele da mão mais flácida. Mas qual a relação exata dessa sensação tátil com a passagem do tempo que se dá entre a vida e a morte? Envelhecer não é apenas um fato a ser revelado por si só. É também um conjunto de significados. Envelhecer faz sofrer? A puberdade faz sofrer? Entrar na vida adulta faz sofrer? Para além da fisiologia, nós acreditamos que sim, que “mudar de fase” no fluxo da vida faz sofrer. Ainda assim, aguardamos e valorizamos a chegada de cada fase, como parte natural do viver – com exceção do envelhecer. A “malfadada” ponte entre crescer e morrer – o envelhecer – é um tema fundamental, a ser tratado desde a primeira infância. Se o gato comeu nossa língua bem na hora de falarmos sobre envelhecimento com as crianças, o azar não é só nosso. É das novas gerações também. Vamos rebobinar. Começar de novo. Relatar como é viver sem omitir fases da vida nem distorcer o fluxo da existência humana. A infância gostará de saber que a vida é uma corrida que vale muito ganhar. O prêmio? Acordar todo dia podendo envelhecer. Publicado na revista Pais&Filhos em abril de 2021 PÁG. 67 Agradecimentos “Agradeço afetuosamente a todas as pessoas que de algum modo tornaram a publicação deste livro possível, prioritariamente o meu obrigada às devotadas equipes da Escola de Gente e da WVA Editora, e ao dedicado grupo de profissionais contratado para a imensa tarefa de produzir e publicar um livro com 9 formatos acessíveis. Muito obrigada também a quem doou, em seu próprio nome, ou patrocinou, em nome das empresas onde atua, este projeto: Ana Lúcia Vilela, Eduardo Saron, Hugo Barreto, Mariano Steinert e Marize Mattos e Nass. Agradeço também, honrada, a quem prefacia este livro, por cada palavra e menção ao meu trabalho: ministra Sonia Guajajara, Sheila Kaplan e Diego Werneck Arguelhes.” PÁG. 68 Créditos AD: Sobre página de fundo cinza claro entram os créditos na cor preta. FINAL DA AD © de Claudia Werneck, 2025 Reservam-se todos os direitos à WVA Editora e Distribuidora EIRELI Av. Fleming, 200 - Barra da Tijuca CEP 22611-040 Rio de Janeiro - RJ - Telefone (21) 98808-7610 Email: vendas@wvaeditora.com.br alberto.arguelhes@gmail.com ISBN 978-65-83653-08-6 | TXT Editor - Alberto Arguelhes Coordenação de produção acessível - Nara Monteiro Adaptação ao formato digital acessível - Alan Thomas Audiodescrição - Tagarelas Acessibilidade | Márcia Caspary Consultoria em audiodescrição - André Campelo Revisão - Magda von Brixen FICHA CATALOGRÁFICA - CONTEÚDO: CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ------------------------------------------------------------------------------------------ W524t werneck, claudia, 1957- Tia Zilda [recurso eletrônico]: histórias de inclusão / Claudia Werneck; [ilustração Beto Werneck]. - 1. ed. - Rio de Janeiro: WVA, 2025. recurso digital Formato: txt Modo de acesso: world wide web Inclui índice ISBN 978-65-83653-08-6 (recurso eletrônico) 1. Crônicas brasileiras. 2. Livros eletrônicos. I. Werneck, Beto. II. Título. CDD: B869.8 25-96711 CDU: 82-94(81) QR CODE: https://bnweb.snel.org.br/scripts/bnweb/bnmcip.exe/ficha?OTpAQmxA ----------------------------------------------------------------------------------------- Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439 07/03/2025 10/03/2025 FIM DA FICHA CATALOGRÁFICA 3ª CAPA AD: Em letras verdes sobre fundo areia, o título Livros da Autora. Abaixo, distribuídas e ocupando todo espaço da página, as capas coloridas das 14 obras de Claudia Werneck. E abaixo de cada capa, em letras pretas, os títulos, edições e datas da primeira edição. FINAL DA AD Livros da autora Muito prazer, eu existo (5ª edição/1992) Coleção Meu Amigo Down (10ª edição/1994) Um amigo diferente? (14ª edição/1996) Ninguém mais vai ser bonzinho, na sociedade inclusiva (4ª edição/1997) Sociedade Inclusiva. Quem cabe no seu TODOS? (5ª edição/1999) Mas ele não é mesmo a sua cara? (1ª edição/2000) Você é gente? (2ª edição/2003) Manual sobre Desenvolvimento Inclusivo para Mídia e Profissionais de Comunicação (2ª edição/2005) Oficineiros da Inclusão (1ª edição/2007) Os Inclusos e os Sisos 122 Teatro de Mobilização pela Diversidade (1ª edição/2009) Sonhos do Dia (2ª edição/2011) Políticas Inclusivas: Juventude, Participação e Acessibilidade - JUVA (1ª edição/2012) CONTRACAPA AD: Sobre fundo areia, um retângulo vertical, azul esverdeado, com letras brancas. No topo deste, outro retângulo, branco, menor e horizontal sobressai, com a marca da “Leitura Acessível, todas as pessoas têm direito de conhecer todas as histórias”. Ícone de um rosto na cor roxa está de perfil para a direita, sorrindo de boca bem aberta e, acima da sua cabeça, brota um livro de 5 páginas coloridas, uma delas com um CD ou DVD. Abaixo entra o texto e no rodapé, sobre outro retângulo de fundo branco horizontal, entram as logos institucionais de patrocínio, apoio e realização. Patrocínio: Lei Rouanet - Incentivo a Projetos Culturais, Itaú, Instituto Cultural Vale e Genoa Capital; Apoio: Saison - Resort e Spa; Realização: Escola de Gente - Comunicação em Inclusão, Ministério da Cultura e Governo Federal - União e Reconstrução. FINAL DA AD Este livro é uma ação da campanha de leitura acessível “Todas as Pessoas Têm Direito a Conhecer Todas as Histórias”, lançada no ano de 2011 pela Escola de Gente e a WVA Editora, com o apoio do Ministério da Cultura. No ano de 2016, a campanha foi premiada na sede da ONU, em Viena, pela Zero Project Conference, como um dos projetos mais inovadores do mundo na área de inclusão e acessibilidade.