Esta é a versão acessível do e-book ETA. Os poucos elementos visuais serão descritos agora começando pela capa, e em seguida, pelas páginas. Após estas descrições, virá o texto do e-book. Descrição da capa: Fotografia colorida. Num palco, entre a cortina vermelha aberta, três artistas, Fabio Nunes, Letícia Medela e Victor Albuquerque, estão juntos e sorrindo. Fábio segura e aponta para uma placa com a logo do ETA Festival e Victor segura, acima da cabeça da Letícia, uma placa escrito ETA. No topo da fotografia em amarelo: Ministério da Cultura, Instituto Cultural Vale e Escola de Gente apresentam. No rodapé da fotografia sobre fundo branco as logos: Lei de Incentivo à Cultura, Lei Rouanet. Patrocínio, Instituto Cultural Vale. Realização, Escola de Gente Comunicação em Inclusão, Ministério da Cultura - Governo Federal Brasil União e Reconstrução. Descrição das páginas: As páginas com textos têm no topo e no rodapé uma mancha ondulada. No topo a mancha é verde água, no rodapé é roxa. A numeração, na cor branca, fica no canto inferior direito. A página com o Índice, segue o mesmo padrão, e à esquerda do nome de cada Insquete, intercaladas, bocas estilizadas representam a comédia e o drama. A boca da comédia é roxa e tem os cantos externos virados para cima. A do drama é verde-água e tem os cantos externos voltados para baixo. A página com o título e informações de cada Insquete, tem, ocupando toda a parte superior, a boca da comédia na cor roxa, com um espaço branco no centro, com o título em preto e as informações sobre autoria e cidade em roxo. No restante da página, a boca do drama em verde-água, com um espaço branco no centro, onde em roxo está escrito cenário e personagem. E em preto as respectivas informações. A última página tem a mesma fotografia da capa, tendo na parte inferior a sobreposição da logo da Escola de Gente, e no rodapé em branco: www.escoladegente.org.br Logo da Escola de Gente: Sobre mancha branca com bordas arredondadas, as letras “e” em roxo, e “g” em azul claro,estão sobre uma mancha verde no formato de um grão de feijão. Abaixo está escrito: Escola de, em roxo, Gente em azul e Comunicação em Inclusão em preto. Texto do e-book: DIREITO À ACESSIBILIDADE Por favor, avise a pessoas cegas, analfabetas, com baixa visão, deficiência intelectual ou psicossocial, baixo letramento, dislexia, dificuldades de leitura, pouco conhecimento do português, impossibilitadas de ler em telas ou que simplesmente preferem obter informações de outros modos, que o conteúdo deste livro digital também está disponível em 6 diferentes formatos acessíveis. Estes são: TXT; PDF; DOC, todos com descrições de imagens e diagramação; vídeo da versão em linguagem simples com audiodescrição, Libras e legendas; áudio da linguagem simples. As versões acessíveis podem ser encontradas no site da Escola de Gente: www.escoladegente.org.br ALINHAMENTO JURÍDICO A edição deste ebook acessível está alinhada à Lei nº 13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão - e à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada no Brasil com valor de Constituição por meio do Decreto Legislativo nº 186/08 e do Decreto Federal nº 6.949/09. O livro também foi elaborado a partir das normas nacionais e internacionais de construção de publicações, com destaque à ABNT NBR 6029/2023. Escola de Gente - Comunicação em Inclusão 10 preciosos textos dos INsquetes do ETA Festival! Seleção do Júri Conheça o Júri do ETA Festival!: JÚRI ARTÍSTICO: Alice Demier, diretora de audiovisual e teatro Bosco Brasil, dramaturgo e roteirista Galba Gogóia, atriz e cineasta Leandro Lamas, ator do grupo Os Inclusos e os Sisos - Teatro de Mobilização pela Diversidade JÚRI CONCEITUAL: Claudio Nascimento, presidente do Grupo Arco-Íris Cidadania LGBTQIA+ Felipe Monteiro, consultor em acessibilidade e audiodescrição Luciana Viegas, fundadora e diretora executiva do Movimento Vidas Negras Com Deficiência Importam no Brasil Rosane Lowenthal, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora e Conselheira Consultiva da Escola de Gente JURADO CONVIDADO PARA A PRIMEIRA FASE DA SELEÇÃO: Marco Antonio Vieira Souto, conselheiro do movimento Atualiza, que atua na causa contra o idadismo Créditos do ebook “10 preciosos textos dos INsquetes do ETA Festival! Seleção do Júri”: Edição (título) Pesquisa e coordenação editorial: Alan Thomas Produção executiva: Natália Simonete Revisão do formato dos textos: Laís Pimentel Revisão final: Magda von Brixen Projeto Gráfico (título) Direção de arte e diagramação: Beto Werneck Acessibilidade (Título) Produção executiva: Nara Monteiro Linguagem simples: Ivana Portella e Jéssica Mendes Vídeos e áudios: CPL Soluções em Acessibilidade Rio de Janeiro 2023 © de Escola de Gente - Comunicação em Inclusão, 2023 Reservados todos os direitos de publicação à Escola de Gente - Comunicação em Inclusão Escola de Gente - Comunicação em Inclusão Avenida Evandro Lins e Silva, 840, sala 819 CEP 22631470 - Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, RJ escoladegente@escoladegente.org.br www.escoladegente.org.br Disponível também nos seguintes formatos: Vídeo: ISBN 978-85-64500-05-1 Audio: ISBN 978-85-64500-04-4 PDF: ISBN 978-85-64500-07-5 PDF acessível: 978-85-64500-06-8 DOC acessível: ISBN 978-85-64500-02-0 CIP – Catalogação na Publicação Elaborada pela bibliotecária Gabriela Lopes (CRB7-6643) Informações contidas na ficha catalográfica: D519 10 preciosos textos dos INsquetes do ETA Festival [recurso eletrônico] : seleção do júri / organização Ministério da Cultura, Instituto Cultural Vale e Escola de Gente. 1. ed. – Rio de Janeiro : Escola de Gente, 2023. 55p ; recurso digital. Formato: TXT. “Está disponível em 6 diferentes formatos acessíveis.” ISBN 978-85-64500-03-7. (recurso eletrônico) 1. Teatro brasileiro. 2. Projeto de acessibilidade. 3. Teatro Inclusivo. 4. Livros eletrônicos. I. Brasil. Ministério da Cultura. II. Instituto Cultural Vale. III. Escola de Gente. CDD – 791.0981 CDU – 793.96(81) ________________ PALAVRAS DA ESCOLA DE GENTE ETA!!!!!! Eis que nasceu o primeiro festival de esquetes online plenamente acessível do Brasil! É a Escola de Gente praticando inclusão, todos os dias, como faz há 21 anos, com ousadia e determinação. O ETA Festival! INsquetes de Teatro Acessível é uma realização da Escola de Gente por meio da Lei Rouanet com patrocínio do Instituto Cultural Vale, uma tríplice e forte aliança que tem oferecido oportunidades culturais únicas. Por serem plenamente acessíveis, isso faz toda a diferença, não somente para quem tem deficiência e vive em regiões empobrecidas, mas para a construção de uma sociedade inclusiva brasileira. Esquetes são cenas curtas que têm como objetivo entreter o público em um curto espaço de tempo. Para o ETA Festival!, a Escola de Gente criou o termo "INsquetes", que é a combinação de "Esquetes" + "Inclusão", para denominar cenas que sejam tanto acessíveis quanto inclusivas. O ETA foi idealizado para ser um festival presencial no ano de 2018 pelo grupo "Os Inclusos e os Sisos”, projeto de arte e transformação social da Escola de Gente, criado em 2003 pela atriz Tatá Werneck. Na pandemia, o ETA foi adaptado para o online pela Escola de Gente. Essa migração só foi possível porque, em 2020, a Escola de Gente criou uma solução tecnológica própria: seu nome é Hiperconexão Inclusiva. Seu mérito é possibilitar a oferta simultânea de quatro recursos de acessibilidade: Libras, legenda, audiodescrição e linguagem simples, no mundo virtual. Nada é mais arriscado, trabalhoso e prazeroso do que criar projetos que transformem iniciativas culturais em ações de fato inclusivas. Caprichamos! O edital do ETA Festival! foi lançado em 14 formatos acessíveis, uma experiência nova também para a Escola de Gente. Recebemos 138 inscrições de 17 estados de todas as regiões do Brasil e também de Portugal. Na votação popular, foram 25.491 votos realizados por meio do aplicativo VEM CA, a premiada plataforma de cultura, conteúdo e conhecimento acessível da Escola de Gente. Um sucesso! O ETA é um exemplo de democratização ampla e diversificada de acesso, e isso nos honra muito! Que este ebook acessível seja útil e tenha vida longa. Como fundadora da Escola de Gente, agradeço ao ministro Paulo Pimenta, ao secretário Henilton Menezes e à secretária Anna Paula Feminella, pelo amplo apoio em tantas fases do ETA e pela participação neste ebook. Agradeço especialmente ao Instituto Cultural Vale, representado aqui pelo seu diretor presidente, Hugo Barreto. Agradeço também ao MinC e à Lei Rouanet por reconhecerem o mérito deste projeto, e a tantas pessoas e instituições que estiveram conosco na condução do ETA Festival!, ao dedicado júri e à consistente equipe do projeto: guerreira, persistente e perspicaz, que não se intimidou pelas intempéries e se manteve ali, firme no leme, como deve ser. Obrigada a quem se inscreveu no ETA, pela confiança! Parabéns aos INsquetes vencedores e aos 10 INsquetes selecionados para compor este ebook! A Escola de Gente agradece ainda a cada crítica, elogio e comentário recebido. Nosso DNA é inovar, experimentar e aprimorar sempre. Esta é a marca da Escola de Gente... Abraços acessíveis e inclusivos! Claudia Werneck, Fundadora da Escola de Gente - Comunicação em Inclusão PALAVRAS DA SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Como Ministro responsável no governo federal por formular e implementar ações orientadas para o acesso à informação, o combate à desinformação e a defesa da democracia, afirmo categoricamente: a acessibilidade na comunicação é uma condição necessária ao exercício de direitos. Partindo desse pressuposto, celebro o ETA Festival!, projeto inovador de arte contemporânea inclusiva patrocinado pela Lei Rouanet. Como tudo que a Escola de Gente - Comunicação em Inclusão oferece, o Festival – que tem caráter formativo, envolvendo workshop educativo e mostra competitiva – contou com plena acessibilidade comunicacional em todas as suas ações (Libras, legenda/estenotipia, audiodescrição e linguagem simples), tendo o Edital sido lançado em 14 formatos acessíveis. Para a mostra competitiva, artistas, grupos e coletivos de todo o Brasil criaram cenas discutindo etarismo, racismo, capacitismo, homofobia, gordofobia, entre outros assuntos da atualidade, demonstrando na prática a interseccionalidade entre esses temas. Parabenizo a Escola de Gente e desejo vida longa ao ETA Festival! Que essa iniciativa repercuta, ganhe escala e frutifique, virando uma referência para políticas públicas inclusivas no campo da arte, da cultura e da comunicação inclusivas. Paulo Pimenta, Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República PALAVRAS DO MINISTÉRIO DA CULTURA É muito relevante para o Ministério da Cultura apoiar iniciativas como o ETA Festival!, que faz com que pessoas com as mais diversas deficiências possam ter acesso à cultura brasileira. Que mais ações como essa sejam realizadas para receber recursos da Lei Rouanet, ferramenta criada para dar acesso a todas as pessoas à cultura do nosso país. O Governo do Presidente Lula, com a liderança na Cultura da Ministra Margareth Menezes, está atento a este movimento de inclusão feito com recursos públicos, sobretudo neste momento em que estamos buscando dar acesso a esse financiamento de forma mais justa e equilibrada entre todas as regiões do País. Isso promoverá uma maior possibilidade de acesso a esses incentivos fiscais, tão importantes para o desenvolvimento da cultura brasileira, pois teremos mais comunidades e territórios participando dessa inclusão. O objetivo é que todos possam usufruir as ações culturais oferecidas, como as peças de teatro, os espetáculos musicais, as exposições de arte financiadas pelo Governo Federal. Parabéns à Escola de Gente e ao júri por essa iniciativa com um resultado tão promissor. Que futuras ações inclusivas possam se inspirar na Escola de Gente e no ETA Festival! Henilton Menezes, Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura PALAVRAS DO MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA ETA! ETA Festival! é arte, é cultura, são direitos culturais, são direitos humanos para as pessoas com deficiência! Tornar o teatro acessível é tornar realidade o acesso aos direitos culturais por todas as pessoas. Pessoas com deficiência requerem acessibilidade como direito fundamental e instrumental ao exercício de todos os direitos. E temos pressa, e precisamos de arte e cultura nas nossas vidas. Sou fã do trabalho da Escola de Gente porque ensina, na prática, como promover acessibilidade cultural. Parabéns à Escola de Gente, pela formação inclusiva de artistas e demais agentes culturais, com e sem deficiência. Parabéns a todas as pessoas que tornaram o festival um sucesso! Anna Paula Feminella, Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania PALAVRAS DO INSTITUTO CULTURAL VALE Iniciativa inovadora de mobilização democrática pela cultura acessível, o ETA Festival! INsquetes de Teatro Acessível amplia a visibilidade e a conscientização de que arte e cultura são fundamentais para a construção de uma sociedade mais inclusiva, justa e democrática. Esta é também uma experiência formativa, que sensibiliza e qualifica a atuação de novas gerações de artistas e profissionais, atuando para promover a mudança que se espera como sociedade. Nesse sentido, a parceria com o ETA Festival! reafirma a atuação do Instituto Cultural Vale pela democratização do acesso à cultura. Buscamos e praticamos a inclusão em nossos espaços culturais próprios e em projetos patrocinados; e atuamos para que cada vez mais pessoas possam ter oportunidade de experienciar a arte e ser transformadas por ela, desenvolvendo iniciativas que promovam diálogos e trocas com todos os públicos. São mais de 600 projetos criados, apoiados ou patrocinados pelo Instituto Cultural Vale desde 2020 - dos projetos que todo mundo conhece aos que todo mundo precisa conhecer. Nessa trajetória, promover a acessibilidade cultural vai muito além de garantir a presença física das pessoas nos espaços de cultura: é entender a cultura como um espaço de todos e para todos, respeitando as diferenças e garantindo o exercício da cidadania. Onde tem cultura, a Vale está. Instituto Cultural Vale ________________ SUMÁRIO INsquete Céu VYP 13 INsquete: Doutor da Tristeza 16 INsquete: GRIÔT 21 INsquete: Há vaga 23 INsquete: O único homem negro na sala 28 INsquete: Oposto de nítido: Pardo 34 INsquete: Qual é o meu papel? 36 INsquete: Reunião com RH 39 INsquete: Sussurros da escravidão - Madalena 42 INsquete: Vaga de Idoso 46 INsquete Céu VYP Talita Halliday (São Paulo - SP) CENÁRIO: Portão de entrada do céu. PERSONAGENS: MARIA FERNANDA ENZO ERMENEGILDA INSQUETE: (Maria (60) aguarda na fila do portão do céu, logo atrás de Fernanda (25) que acaba de ser atendida e entra pelo portão mexendo no celular. Enzo (17) faz a triagem das almas no balcão de entrada) ENZO - A senhora é? MARIA - Dona Maria. Maria dos Anjos. ENZO - Xi, vai ter homônimo. Certeza. Aqui é todo mundo dos anjos. E a senhora morreu de quê, Dona Maria? MARIA - Infarto, moço. Fulminante. Senti uma dor no braço e quando vi, já tava aqui em cima. Aqui é em cima, né? ENZO - Sim, Dona Maria. Estação Paraíso. (corre os olhos enquanto folheia longa lista de nomes) Letra I… Impotência. Incontinência. Infarto. Humm, não tô achando...Que dia a senhora foi ao mundo, Dona Maria? MARIA - 6 de novembro de 1963. ENZO - Ahh.. tá explicado. Passou de 39 anos, 11 meses e 29 dias não entra mais aqui, meu bem. Por isso não apareceu na lista. Eu devia ter desconfiado. Tá com a carinha enrugadinha, né? Tava precisando de uma harmonizaçãozinha, de um ácido, viu, minha flor? Acho que deixei passar porque nome de velho tá na moda... (lê na lista) Antônia, Teresa,... mas Maria dos Anjos não voltou mesmo. MARIA - Como assim? Não tô entendendo... ENZO - Dona Maria, depois dos 40 a pessoa já não é mais produtiva. O corpo astral já não tá mais funcionando direito. A pessoa já começa a falar supimpa, joia, batuta... Aí não dá, né, Dona Maria? É cringe demais… Então a gente resolveu adotar novos critérios de inclusão por aqui. O céu agora é VYP: VERY YOUNG PEOPLE! Super exclusivo! MARIA - Mas quem decidiu isso, meu Deus? ENZO - Foi ele, não, Dona Maria. Ele deu férias pra São Pedro e, como eu já tava estagiando, cobri o posto. E, lóoooogico, tô aproveitando a oportunidade pra racionalizar o funcionamento da repartição. Porque proatividade é tudo, Dona Maria. Isso aqui tava igual fila de banco, de tanto velho junto. Mas agora o céu tá melhorando. Já tem até uma galera do TikTok na ala B. MARIA - (irritada) E onde vai ser meu eterno descanso? ENZO - Por favor, se acalme, Dona Maria! O setor de compras fretou uma nuvem pra levar a galera de 40+ lá pra baixo. Eu já vou pedir aqui no iCloud... MARIA - Pode parar, seu... ENZO - Enzo. MARIA - Pode parar, seu Enzo. Isso aqui não tá certo, não! Já tava difícil ser velha na Terra. Dor na ciática, joanete, bexiga baixa, reforma da previdência com aposentadoria aos 90, banco só pela Internet, digitar zap naquele tecladinho do celular. E agora, quando eu achei que finalmente ia ter um pouco de paz no céu... Assim eu vou ter um infarto! ENZO - Outro? Se morrer de novo, vai pro fim da fila, viu? MARIA - Chama o gerente agora, que eu quero falar com ele. ENZO - Deus? MARIA - Isso. ENZO - Não vai dar. Mandamos Ele lá pra baixo. Velho demais. E olha que Ele nem reclamou. Disse que aqui em cima tava virando um inferno. Ele foi pra um campeonato de bocha no interior. Disse que lá não tem TikTok. MARIA - Mas isso é um absurdo. Então não vai ter mais velho no céu? ENZO - Não, senhora. MARIA - Morreu depois dos 40, é pro andar de baixo? ENZO - Exato, Dona Maria. MARIA - Seu Enzo, vida de velho é um inferno mesmo. Mas eu nunca imaginei que ia sofrer etarismo até no céu. Bom, se nem Deus escapou dessa desgraça... Tá, pode pedir essa nuvem... ENZO - Eu sabia que a senhora iria compreender. MARIA - Mas me tira só uma dúvida antes de eu partir. Eu sempre quis saber: no céu tem pão? ENZO - Cruzes! De jeito nenhum, Dona Maria. Aqui é tudo gluten-free! Trigo dá barriga! MARIA - Cadê essa nuvem que vai pro inferno mesmo? Sem pão, eu não fico! (Maria sai de cena. Chega a vez de Ermenegilda (18) na fila do céu) ENZO - (olhos fixos na lista) Próximo! ERMENEGILDA - Sou eu. Ermenegilda do Socorro. ENZO - (sem tirar os olhos da lista) Velha. Pode descer. Próximo! ERMENEGILDA - Mas eu só tenho 18 anos! ENZO - Mas esse nome não voltou! Bom, vamos fazer um teste. Faz uma dancinha do TikTok. (Ermenegilda faz dancinha do TikTok) ENZO - (contrariado) Tá, pode entrar. ERMENEGILDA - Posso tirar uma selfie com você antes? ENZO - Aqui é céu-fie! (Enzo e Ermenegilda tiram selfie) ENZO - Agora vai correndo no cartório na ala C e muda esse nome, que Ermenegilda do Socorro não shippa... FIM DO INSQUETE INsquete: Doutor da Tristeza Guilherme Macedo (Rio de Janeiro - RJ) CENÁRIO: Dois ambientes diversos. PERSONAGENS: MÉDICO PAULA INSQUETE (Som de chamada de vídeo por celular (Facetime, WhatsApp, Zoom ou similares) Médico sorri enquanto fala com Paula, a paciente. A câmera dela está desligada) MÉDICO - Paula? PAULA - Oi, doutor. Não repara a câmera desligada, é que o senhor me ligou meio no susto. Mas pode ir falando que é o tempo de botar uma roupa aqui. MÉDICO - Tá certo. Queria falar sobre os seus exames. PAULA - E aí? MÉDICO - Tudo certo. Você tá com uma taxa de glicose excelente. PAULA - Mesmo? Ai, nossa, que maravilha! E o colesterol? MÉDICO - Tá normal também. (vendo o exame) Sangue, urina, fezes... Você tem quantos anos? PAULA - Quarenta. MÉDICO - Pelos exames parece que tem vinte. Impressionante. PAULA - Nossa, doutor! Que notícia boa que o senhor me dá. Foi a primeira vez que eu fiz um checkup completo, né? A gente sempre fica nervosa. MÉDICO - Pode ficar tranquila, Paula. Que você tá com a saúde de uma criança. De uma criança saudável, claro. (Paula liga a câmera, revelando ser uma mulher gorda) PAULA - Ah, que bom. (O médico fica sério e em silêncio por um tempo, olhando para Paula) PAULA - Tá tudo bem, doutor? MÉDICO - (constrangido) Tá. Tudo bem. Você é a Paula de Almeida, certo? PAULA - Sim. Paula de Almeida. MÉDICO - Dos Santos. PAULA - Dos Santos, sim. MÉDICO: Então, Paula. Eu acho que você tem diabetes. PAULA - Diabetes? Mas você acabou de dizer que a minha glicose tá excelente. MÉDICO - Ela tava excelente. Mas sabe como é. Glicose é bicho ardiloso. Sobe e a gente nem percebe. PAULA - Que estranho. MÉDICO - Mesma coisa com o seu colesterol. PAULA - Subiu também? MÉDICO - Ih, menina, decolou. Vejo aqui, na minha frente, um sério risco de infarto. PAULA - Mas eu nunca senti nada. MÉDICO - Doença no coração é sorrateira, menina. Uma hora a pessoa consegue dar um espacate no chão e na outra...Que ver? Dá um espacate. PAULA - O quê? MÉDICO - Dá um espacate. PAULA - Nem sei o que é espacate. MÉDICO - Tá vendo? Um belo sintoma de colesterol alto. PAULA - Doutor, eu me cuido. Eu nado. Faço caminhada. MÉDICO - Não tá parecendo. PAULA - Não tá parecendo? MÉDICO - Aparecendo. Nos exames. PAULA - E fezes e urina? Não tavam ótimos? MÉDICO - É que tá tudo meio embaçado e não vi que tá tudo ruim também. Vista cansada. Paula, vai por mim e se prepara pro pior. PAULA - Pro pior?! MÉDICO - Pra mais doença. Trombose, malária, fimose. PAULA - Fimose? Mas eu sou mulher. MÉDICO - Ah, mas é que doença não escolhe paciente. PAULA - (angustiada) Isso não pode estar acontecendo comigo! (Paula se desespera e deixa cair o celular no chão. O médico deixa de vê-la e muda o tom) MÉDICO - É como eu disse, Paula. A sua saúde está ótima. (Paula recolhe o celular e sua imagem reaparece para o médico) PAULA - Como é, doutor? MÉDICO - Você tem no máximo seis meses de vida. (Desconfiada, Paula tapa a câmera com a mão) MÉDICO - Tá vendendo saúde. (Paula destapa a câmera) MÉDICO - Chama o Samu! PAULA - Tá me tratando assim porque eu tô usando o convênio? (Paula tapa a câmera novamente) MÉDICO - Vai viver muito, Highlander! (Paula destapa a câmera) MÉDICO - Liga pro necrotério! (Paula tapa e destapa a câmera rapidamente) PAULA - Bu! (O médico toma um susto, mas depois se controla) PAULA - Olha, já ouvi que câmera engorda. Agora nunca ouvi que ela deixa doente… MÉDICO - (dissimulado) Não tô entendendo... PAULA - Relaxa, que eu entendi. Ou isso aqui é alguma pegadinha ridícula dos “doutores da tristeza”… Ou o seu problema é vista cassada. MÉDICO - Hein? PAULA - Cassada pelo Conselho Regional de Medicina. (O médico cai em si e, por fim, coloca um nariz de palhaço cinza, constrangido) MÉDICO - (voz afetada) Doutores da tristezaaaa! FIM DO INSQUETE INsquete: GRIÔT Jhonata Almeida e Kennedy Gomes Grupo: Cia Café com Pão de Teatro (Campina Grande - PB) CENÁRIO: Indefinido PERSONAGENS: SENHORA GRIÔT INSQUETE NARRAÇÃO - Vocês sabem o que é um “GRIÔT”? É como são chamados na África os contadores de histórias. Eles são considerados sábios e são muito respeitados na comunidade onde vivem e, através de suas histórias, eles passam de geração em geração, as tradições de seus povos. SENHORA - O que você faz aqui tão longe de sua terra? GRIÔT - Quem é a senhora? SENHORA - Sou a senhora de mil olhos e diferentes olhares, ora bolas! Vamos, responda! O que você faz aqui tão longe de sua terra? GRIÔT - Minha terra? Minha terra ficou longe e tão triste que virou saudade. Foi quando veio o monstro engolidor de gentes e levou meu pai para o fundo do coração da noite sem luar e me deixou sozinho sem histórias, sem memória e com um tambor que se calou. SENHORA - Escuta teu coração, menino! O tambor continua batendo aÍ no fundo do seu peito como o coração da mãe África. Está vendo o sol se pondo lá no infinito do oceano? Foi de lá que nossa gente veio. Viemos navegando em muitas línguas, muitas luas, muitas lutas, muitas dores... Até aqui. Agora nós somos o barco, o remo e os cabelos do mar… GRIÔT - Eu preciso saber o caminho para chegar ao País dos Bichos Comedores de Palavras! SENHORA - Que coragem mais inútil, entregar suas palavras para aqueles bichos fúteis. GRIÔT - A senhora vai me dizer ou não? SENHORA - A memória, pequeno garoto, é despertada por uma imagem, um cheiro, um som e na maioria das vezes por um sentimento. GRIÔT - Mas minha cabeça não ajuda muito a ser um grande contador de histórias como meu pai. SENHORA - Hum! Então você gostaria de ser um contador de histórias? GRIÔT - NÃO! SENHORA - Para ser um contador de histórias não basta ter só uma boa cabeça, tem que ter bons ouvidos, bons olhos e bom coração pra fazer pulsar o sentimento e só assim tocar o tambor. GRIÔT - E como faço para tocar o tambor? SENHORA - Quem soltou os freios dessa língua? Retire a pele do seu medo e encante este tambor, seu destino já foi traçado e seu fio já foi encontrado. Você é um contador de histórias e precisará dele para alegrar as pessoas. (Som percussivo) GRIÔT - Pisca, pisca, voa, voa... Em uma noite vários vagalumes passeavam pela floresta, até que surge uma serpente e começa a perseguir um deles. O vagalume, é claro, já estava incomodado. Ele fugia, fugia, mas a serpente continuava a persegui-lo. Então ele parou e perguntou: - Por acaso eu faço parte da sua cadeia alimentar? - Não. - Então a senhora tem algo contra mim? - Também não. - Então por que me persegues? - É porque eu não suporto ver você brilhar. SENHORA - E assim o pequeno garoto encontrou o fio de sua história e continuou o seu destino de ser um GRIÔT! FIM DO INSQUETE INsquete: Há vaga Oton Duarte (Rio de Janeiro - RJ) CENÁRIO: Auditório do programa de TV “Há vaga” PERSONAGENS: APRESENTADOR Uma LÉSBICA PRETA Uma PESSOA TRANS Uma BI COM DEFICIÊNCIA Um GAY INSQUETE: (Um logotipo de um programa de TV aparece ao fundo. Ouvimos uma música que vai baixando à medida que entra a voz em off do APRESENTADOR. Conforme ele anuncia a pessoa concorrente à vaga, uma tela revela quem participará da competição) APRESENTADOR (OFF) - Um Gay, Uma Lésbica Preta, Uma Pessoa Trans e Uma Bi Com Deficiência disputarão, hoje, no “Há Vaga”, uma única chance de emprego no especial cota LGBTQIA… Poxa, tanta letra…! Enfim, essas pessoas só precisam mesmo de uma oportunidade. Pra começar, a dinâmica da noite é: “Se eliminem”. Cada concorrente deverá justificar, em até 30 segundos, o porque precisa dessa vaga. Enquanto isso, o nosso júri secreto de critérios obscuros dará uma pontuação para vocês. Quem receber mais pontos, ganhará uma super vaga de Coordenador-dora-dore na Durval Engenharia - a empresa que mais constrói oportunidades de sonhar. Bora lá? Quem começa? (Uma confusão se inicia com todes concorrentes ao mesmo tempo falando) TODES - Eu! APRESENTADOR (OFF) - Eeeeei! Uma pessoa por vez. Ou vocês não são um movimento organizado? (Todes se calam e esquivam seus olhares para os lados. Um cronômetro marcando 30 segundos surge no canto e uma música de tensão é ouvida ao fundo) MULHER PRETA E LÉSBICA - Então eu vou começar, porque eu sou uma mulher preta e lésbica. (Neste instante, uma tabela de pontuação aparece no canto oposto ao cronômetro na tela e 10 pontos surgem para a Mulher Preta e Lésbica. Ela estranha os números e continua o seu discurso) MULHER PRETA E LÉSBICA - Moro em periferia... (A pontuação da mulher muda para 15) MULHER PRETA E LÉSBICA - Fui criada por uma mãe solo... (Os pontos viram 25) MULHER PRETA E LÉSBICA - E eu mereço essa oportunidade... (O cronômetro para onde estava, zera, a mulher fica mutada e o relógio volta a contabilizar novamente os 30 segundos, abrindo o áudio da Pessoa Trans) PESSOA TRANS - Não mais do que eu que sou uma pessoa trans... (30 pontos aparecem no placar para a Pessoa Trans que dá um sorriso de canto de boca e passa a desenvolver a sua justificativa) PESSOA TRANS - Não-binária... (São acrescidos mais pontos para a Pessoa Trans que passa para 40. Enquanto isso, a Mulher Preta, ainda sem áudio, tenta ser ouvida, mas sem sucesso) PESSOA TRANS - Filhe de pais nordestinos que vieram para o Sudeste, a fim de condições melhores de vida... (Surgem 50 pontos na tabela para a Pessoa Trans que não segura um pulinho de empolgação. O cronômetro para onde estava, zera novamente, a Pessoa Trans também fica mutada e o relógio volta a contabilizar os 30 segundos, abrindo o áudio da Bi com Deficiência) BI COM DEFICIÊNCIA - Condições essas que não tive, por exemplo. Porque eu sou uma pessoa com deficiência... (A Bi com Deficiência recebe 10 pontos. Todes se surpreendem) BI COM DEFICIÊNCIA - … que beija meninas e meninos. (50 pontos são mostrados no placar da garota. Agora, Mulher Preta e Lésbica ri da Pessoa Trans, que está mutada e mexendo em um fone de ouvido, tentando se comunicar) BI COM DEFICIÊNCIA - E que já beijou também uma pessoa trans... (Os 50 pontos viram 60 no placar da moça) BI COM DEFICIÊNCIA - Porque eu gosto mesmo é de beijar pessoas... (A pontuação sobe para 70) BI COM DEFICIÊNCIA - A minha deficiência não é na boca. (O 70 recebe um acréscimo de 5 e torna-se 75 no placar da Bi com Deficiência. Assim como aconteceu com as outras pessoas, a Bi com Deficiência também tem o seu cronômetro zerado e seu áudio cortado. O áudio do Gay é aberto, ele olha para todos os cantos, fica apreensivo e inicia o seu discurso) GAY - Primeiramente, eu gostaria de agradecer a essa empresa incrível.... (O Gay recebe 10 pontos) GAY - … que assim como eu, acredita que todes nozes somes iguaes. Porque talento não tem cor. Competência não tem bandeira. E mérito só tem quem busca. (A pontuação do rapaz passa para 25. Enquanto isso, as outras pessoas concorrentes levantam cartazes solicitando serem ouvidas) GAY - E eu busquei desde o dia em que eu saí de casa, aos 18 anos, para morar sozinho no meu apê na Barra da Tijuca, pago com a mesada que eu conquistei por passar no vestibular da PUC. (O placar sobe para 50) GAY - Conquista que também foi da minha família que investiu o seu dinheirinho no meu intercâmbio de formatura em Londres. (A escalada continua, passa para 75 pontos e o cronômetro para de contar o tempo) GAY - E são nessas coisas que eu procuro focar aqui. Porque eu não preciso ter beijado um cara para ser gay. (A pontuação do rapaz que discursa cai para 70 e a Bi com Deficiência comemora) GAY - Na verdade, eu já beijei um cara, bêbado,numa festinha da faculdade. (O placar do Gay sobre para 100 pontos e começa a piscar na tela. Todes se entreolham indignades, com exceção do gay que está vibrando) APRESENTADOR (OFF) - Parabéns candidatos-tas-tes! Boas justificativas, mas como só podemos ter um vencedor. Essa pessoa é o nosso querido Frederico Durval Jr. Parabéns Durvalzinho! (Todas as telas somem com exceção da de Durvalzinho. Uma chuva de papel picado cai na tela de Durvalzinho (o Gay) que chora, vibra e comemora bastante) APRESENTADOR (OFF) - Mas como a Durval Engenharia é a empresa que mais constrói inclusão nesse país, essas outras pessoas também serão contempladas com cargos que só somam na Família Durval. (A tela se apaga e, em preto e branco, aparece a tela da Bi com Deficiência que segura uma resma de papel de forma inexpressiva) APRESENTADOR (OFF) - A Bi com Deficiência agora é auxiliar de xerox. BI COM DEFICIÊNCIA - Eu amo a Durval porque aqui eu posso tanto gostar de xerocar quanto de scannear sem ninguém me julgar. (A tela da Bi com Deficiência some e surge a da Pessoa Trans que segura uma caixa de papelão e um rolo de fita adesiva nada empolgada) APRESENTADOR (OFF) - A Pessoa Trans agora é empacotadora. PESSOA TRANS - Eu amo a Durval porque aqui posso lacrar à vontade. (A tela da Pessoa Trans some e surge a da Mulher Preta e Lésbica que segura uma colher, muito sem vontade) APRESENTADOR (OFF) - A Mulher Preta e Lésbica agora é condutora alimentícia. MULHER PRETA E LÉSBICA - Eu amo a Durval porque aqui eu me sinto como sendo da família. (A mulher pega a colher, mergulha num prato de comida e faz um aviãozinho com o objeto) MULHER PRETA E LÉSBICA - Olha o aviãozinho, Durvalzinho. (A tela de Durvalzinho abre e ele está sentado numa cadeira de escritório com um babador recebendo a colherada da Mulher Preta e Lésbica. Assim que ele põe a colher na boca, a tela da mulher some, ficando só a do rapaz, que aparece com um sorriso grande no rosto) DURVALZINHO (O GAY) - Eu amo a Durval, porque nós somos a Durval! FIM DO INSQUETE INsquete: O único homem negro na sala Patrick de Andrade Silva Grupo: ALLWEART (São Paulo - SP) CENÁRIO: Escola e ambiente corporativo PERSONAGENS: CADU SENHORA ALUNOS BRANCOS ALUNOS NEGROS NAMORADA SOGRO SOGRA MARISTELA CÉSAR TRABALHADORES INSQUETE (Cadu (35), negro, alto, com trajes modernos e de cores sóbrias, sai de um fundo escuro, se centralizando sob a luz branca levemente granulada. Vemos seu corpo inteiro no espaço vazio) CADU - Oi, chega aí, pode vir pra mais pertinho. Sempre fui do povo, não curto ficar sozinho. (Nos aproximamos até perdemos o espaço, ficamos apenas com o seu rosto) CADU - Já era chato na escola, quando eu era pequenininho. De canto e emburrado, querendo só um amiguinho. (A câmera se afasta novamente, e o espaço agora tem pessoas em trajes infantis. Cadu se senta no chão, brinquedos por ali além de cadernos. Uma mulher mais velha entra com uma lousa ao fundo) CADU - Eu era bagunceiro, o Enzo era hiperativo. Eu era má influência, o Enzo tinha melhor amigo. (A senhora mais velha interage com um aluno branco e loiro, Enzo. Outros alunos enfeitam a cabeça de Cadu com um babador, e então retiram e correm com os brinquedos, saindo de cena. A câmera se aproxima de Cadu) CADU - Por que a tia não brincava comigo? (As pessoas ao redor trazem cadeiras. A senhora mais velha pega Enzo e o senta numa cadeira ao lado. Nos afastamos novamente. Os adereços infantis são dispensados para fora do quadro) CADU - Aí eu comecei a crescer, a coisa ficando mais bruta. (Os alunos, agora em uniformes apertados de escola, colocam rapidamente cadeiras e se sentam) CADU - Vários apelidos, "capa de bíblia", "grafite" e até... ENZO - “Suco de Fruta”. (O resto da turma cai na risada. Como numa dança das cadeiras, estes saem de cena. E colegas negros tomam seu lugar) CADU - Aí achei meu grupo: "Os únicos pretos na sala". (O grupo se reúne ao lado de Cadu e fazem movimentos coreografados) CADU - Aí nois ficou chave, meteu boné de marca. Passinho de funk e gíria da quebrada. (O grupo vem atrás dele. Um veste boné e óculos Juliet, outro coreografa um passinho. Eles trocam de roupa ao fundo) CADU - A patricinha se derreteu e eu dei aquela palmitada... (O grupo ao fundo para. Vira as costas e deixa Cadu. O homem joga o boné e óculos para fora de cena. Estamos próximos a ele novamente. Quando abrimos, Cadu se senta em uma mesa de jantar posta no palco) CADU - No almoço com o pai dela, eu era... (Vemos uma mesa com uma Namorada e sua família branca) CADU - O único homem negro na sala. (Nos afastamos para a ponta da mesa onde o Sogro pergunta) SOGRO - Mas cê pensa em trabalhar? Fazer uma faculdade? (Nos aproximamos de Cadu. A Namorada coloca um suéter rosa por cima de sua roupa) CADU - Pra vocês eu não tinha cara de médico, arquiteto ou engenheiro. Reclamavam do meu estilo e do meu jeito. (Recuamos para a Sogra) SOGRA - Hoje em dia tá difícil. Tudo é preconceito. (Cadu revira os olhos. A Namorada se aproxima) CADU - Mas já passou. O preto se valorizou. Fogo nos racista. E essa mina que só pensava no meu… A garota se assusta e o pai grita: SOGRO - OOOOU! (Cadu levanta da mesa, a empurrando. A luz o acompanha enquanto peças de roupa voam em sua direção. Ele se veste com um traje social rapidamente enquanto prossegue) CADU - Bora pro trampo! (Os itens do jantar são arrancados da mesa que é posta de lado. Computadores e itens de escritório entram em cena. A mesa se torna três ilhas de telemarketing. Mais duas pessoas ao lado de Cadu. Encaixam headset em suas cabeças) CADU - Telemarketing, trampo de atendente. Foi de segunda a sexta que eu descobri a minha gente. (Levantando o rosto de suas telas se revelam duas pessoas) CADU - OS ÚNICOS NA SALA. Um novo grupo se formava. O único homem negro. MARISTELA - A única mina trans. CÉSAR - E o único deficiente. (O grupo se cumprimenta afetuosamente) CADU - Nos chamavam de cota, eu chamava de eficiente. (Um grupo de outros trabalhadores passa e despeja papéis, fichas e pastas sobre as mesas) CADU - Piada vai, assédio vem. Eu sempre de cabeça quente. (Cadu joga todos os papéis pro ar e se levanta) CADU - Passei direto no RH e mandei ir se f... CÉSAR - EEEE. (Cadu se levanta. Dessa vez sai acompanhado. O time fica na escuridão vazia) MARISTELA - Mas e aí, o que a gente vai fazer? (Cadu pisa à frente) CADU - Achei na arte uma saída pra nunca mais ter que sofrer. (Maristela e César saem de cena. Cadu se posiciona à frente. Em passos lentos, abrimos para um palco vazio e suas roupas originais. Ao fundo vemos todo elenco começar a sair) CADU - Algum lugar onde eu pudesse me ver pequenininho, olhar no olho daquele pretinho. (Cadu se abaixa enquanto fala. Ficamos próximos de seu olhar. Maristela vem ao fundo, posicionando uma mesa. César a acompanha. Eles conversam sem som, ela posiciona uma lousa) CADU - Dizer pra ele que ainda tem carinho. (Maristela se aproxima e beija o rosto de Cadu) CADU - Que vai cruzar com gente boa no caminho. (César passa e o cumprimenta com um soquinho) CADU - Todo mundo entra e ninguém tá mais sozinho. (Cadu respira fundo e se levanta novamente) CADU - Entro nas quebrada e levo luz pros menózinho. Hoje ninguém me cala. Sofri, mas aprendi e por vocês... (Enquanto ele termina, nos afastamos mais. Ganhando o plano geral, percebemos os outros atores sentados) CADU - Nunca mais vou ser: O único homem negro na sala. (Vemos aplausos mas não ouvimos. Cadu se curva e vai até a lousa. Nela ele escreve: “TEATRO. AULA 01”) FIM DO INSQUETE INsquete: Oposto de nítido: Pardo Sofia Borges Inati Grupo: Cia Café com Leite (Campinas - SP) CENÁRIO: Apartamento de Sofia PERSONAGENS: SOFIA INSQUETE (Sofia entra no apartamento cansada, jogando a bolsa. Ela pega algumas fotos suas de infância sobre a mesa de entrada. Detalhar as fotos) SOFIA - Cresci em um ambiente muito branco, então lá eu e minhas irmãs éramos “alguma outra coisa” só não sabia o quê. (Ela se apoia à mesa pensando como se lembrasse da situação) SOFIA - Quatro filhas. A coitada da minha mãe não deu conta de ficar com cada uma das quatro durante o processo todo do RG. Resultado: duas tiveram “branca” cadastrado e duas, “parda”, (senta-se) pois alguém olhou para aquelas crianças e decidiu que seria assim, mesmo que tenhamos exatamente o mesmo tom, pais, origens. (Simula o enquadramento de uma foto tirada em 3x4, ela sorri para a câmera e depois sai de quadro. No quarto de Sofia, ela vai para a frente do espelho, de costas para a plateia/câmera, e retira parte das roupas) SOFIA - O espelho nunca me contou nada sobre mim. Só me disparava olhares confusos e vazios. Espelho, espelho meu, quem é que sou eu? Pelo reflexo quase não se vê. Ausência de identidade. Nada aqui é claro. Nada é nítido. Tudo fica meio pardo. Ela se aproxima mais do espelho. SOFIA - Mas, calma, esse nariz. Esse meu pai tem também. Esse cabelo tão mal falado emoldura o perfil da minha irmã tão bem. Esse olho me encara de volta em todos os cômodos, em todos os rostos lá em casa. Puxei por alguém. Ancestralidade. (De frente para a plateia) SOFIA - Vou me apegar. Agarro firme, não largo, não posso largar, vou me apegar, pra não me apagar, mereço ter um reflexo no espelho. (No espelho que observa de volta, ninguém refletido. Multiplicidade de vozes) SOFIA - Mas foram seus bisavôs!! SOFIA - “Você nem sabe falar árabe”. SOFIA - Terceira geração? Esquece isso. SOFIA - Mas preciso de algo pra me segurar. Se a pele por fora é árabe, não há opção se não o sangue não ser. (Sofia se senta na ponta da cama, exausta) SOFIA - Esse país não dá nenhuma opção que me represente. Não sou branca, ou, pelo menos, se sou, não faz sentido muitas coisas que vivi. Não me sinto assim. Se sou branca, não faz sentido cada vez que recebi uma fetichização do meu “corpão de morena brasileira/mulata”, cada vez que fui invisível, cada vez que fui parada em aeroportos, confundida com vendedora ou com qualquer pessoa preta mesmo que não tivesse nada a ver comigo. Cada olhar maldoso, cada pergunta idiota, cada lágrima no dia que vi uma boneca com meu tom de pele. Não sou preta, sei disso, e nunca tentei ocupar esse espaço. Não sou parda se essa classificação é uma pessoa descendente de preto com branco. É outro espaço que não me pertence e não quero tomar de quem tem. Bem-vindos ao meu não-lugar. (Olha para a plateia/câmera) SOFIA - O quê que sou? Me fala. Fala, vai. Me ajuda. Me ajuda a me encaixar na porra da caixinha que tenho que preencher em qualquer burocracia! Falaaa! (Vemos Sofia agora do lado oposto da mesa) SOFIA - Desculpa, não quis me exceder. (levanta-se e vai em direção à plateia) Vou pegar minha confusão e me apoiar na única coisa que conheço de mim. (pega as fotos na mesa) Minha ascendência. Na inocente expectativa de que isso gere algum conforto perante a não se encontrar. Bem-vindos ao meu não-lugar. (senta-se novamente na cama) De frente para a plateia/câmera. SOFIA - Agarro firme. Não largo; não posso largar. Vou me apegar pra não me apagar. Mereço ter um reflexo no espelho. FIM DO INSQUETE INsquete: Qual é o meu papel? Nitai Domingues e Bea Simões Grupo: Grupo Akoma (Rio de Janeiro - RJ) CENÁRIO: Sala de seleção de elenco PERSONAGENS: CANDIDATO PEDRO AVALIADOR 1 (BETO) AVALIADOR 2 (MAURO) INSQUETE (Em uma sala, dois avaliadores sentados em cadeiras, chamam o próximo candidato para iniciar o teste de elenco para um papel) AVALIADOR 1 (BETO) - Julio, pode pedir para entrar o próximo candidato, por favor! (Virando pro outro avaliador) É esse lugar, sabe, Mauro? Representatividade. Para esse papel, a gente precisa de alguém que represente bem essa pauta, afinal, estão rolando vários editais com essa proposta de inclusão. É muita grana! Entra o candidato. Ele se posiciona em frente aos avaliadores. CANDIDATO PEDRO - Boa tarde! AVALIADOR 1 (BETO) - Boa tarde! Você é o… pera, deixa eu botar os óculos porque eu tô ceguinho (Lê o nome na ficha de inscrição). Pedro, não é isso? Veio fazer o teste pro protagonista? CANDIDATO PEDRO - Isso, isso. AVALIADOR 2 (MAURO) - Então vamos lá, Pedro, me fala um pouco do roteiro. Você entendeu a proposta, ficou com alguma dúvida? CANDIDATO PEDRO - Ah, gostei do enredo, achei legal a ideia do protagonista ser uma pessoa com deficiência, não vejo isso por aí. Pela primeira vez me senti representado e… AVALIADOR 1 (BETO) - Pera aí, como assim? Você é um portador de deficiência? CANDIDATO PEDRO - Portador? Eu sou uma PESSOA com deficiência. AVALIADOR 1 (BETO) - Eta… Só um minutinho, querido! (virando pro outro avaliador como se contasse um segredo) Mauro, eu achei que esse cara era normal… O que a gente precisa é de alguém que represente um deficiente e não um deficiente de verdade. AVALIADOR 2 (MAURO) - Pedro, a pauta da inclusão é muito importante, e é preciso ter um certo cuidado com o “Como” vamos falar sobre isso, não podemos dar uma mancada, entende?! Por isso estamos procurando a pessoa certa para esse papel e eu não sei se seria você… AVALIADOR 1 (BETO) - Olha, queremos que o protagonista seja tipo um super deficiente, ele teria todas as deficiências, e superaria todas elas. A gente não quis definir uma em específico para que mais pessoas se identifiquem, entende? AVALIADOR 2 (MAURO) - O que o Beto tá querendo dizer é que você não representaria muito bem as pessoas que estamos visando atingir, porque você não tem cara de deficiente. AVALIADOR 1 (BETO) - Não me leve a mal, Pedro, mas essa sua deficiência limita muito a gente. AVALIADOR 2 (MAURO) - Eu gostei de você, mas não posso te dar esse papel. (O Candidato Pedro fica calado sem saber como reagir) AVALIADOR 1 (BETO) - Ué, ficou mudo? (Pedro sai da sala) AVALIADOR 2 (MAURO) - Tive a impressão que ele não gostou de alguma coisa do que a gente disse… AVALIADOR 1 (BETO) - Ah… A vida é sobre superação. FIM DO INSQUETE INsquete: Reunião com RH Eduarda Reis e Carine Fraga Grupo: Coletivo Nós (Duque de Caxias - RJ) CENÁRIO: Sala de trabalho de uma empresa PERSONAGENS: AMANDA EDITE INSQUETE Amanda está na sala mexendo em seu computador com semblante empolgado. Edite entra com seus papéis e bolsa na mão. AMANDA - Edite, bom dia, minha flor, tudo bem? Eu te chamei aqui pra que possamos fazer a reunião de alinhamento de novas políticas para a empresa...e sobre aquela contratação que ficou pendente. EDITE - Claro, bom dia. Trouxe umas coisas aqui também e… (Amanda a corta) AMANDA - Agora, vou te falar, hein? Que ingrato aquele Jorge! Cheio de benefícios dentro dessa empresa, direito de usar o banheiro do escritório, beber o cafezinho que EU trago e deixo lá na copinha, usar o telefone dele no trabalho… quando eu precisava que ele ligasse pros clientes… Dava 100 reais a mais no fim do mês de presente só porque eu pedia ele pra trabalhar nos eventos da empresa arrumando tudo antes de começar e depois de terminar, e ele tendo a cara de pau de me pedir pra trabalhar de casa??? Olha pra mim! Isso é o cúmulo do funcionár… Edite a corta. EDITE - Por causa da cadeira... AMANDA - Quê?... EDITE - Ele na verdade saiu por causa da cadeira de rodas, né?... Porque o elevador do prédio sempre dá algum defeito e sempre dois funcionários precisavam subir o primeiro andar com ele por conta da cadeia de rodas, o que muitas vezes impedia ele de trabalhar. E como aqui ele trabalhava muito no computador ele pensou que... AMANDA - Detalhes. Quem quer sempre dá um jeito e esse é o lema da nossa empresa. Demos a oportunidade, mostramos que somos uma empresa inclusiva e sem preconceitos, esse bla-bla-bla aí que vocês do RH ficam me cobrando… (percebe que falou demais) super importante, válido, essencial pra nossa empresa, assim como abrirmos as portas pra Ju, grande Julinha, a moreninha sabe?! Mulher guerreira, né, periférica, genial... EDITE - Na verdade, a Julia já não trabalha aqui há dois meses. Ela pediu demissão porque o vale transporte que você baixou pra 110 reais não tava sendo suficiente e ela estava pagando pra trabalhar. AMANDA - Mas como não, minha gente? Queria eu tá ganhando 110 reais e vir de ônibus! Sabe quanto eu gasto de gasolina na minha Fusion??? Tá tudo caríssimo, Edite! Caminhar faz super bem, mas, enfim, né? Prioridades. Todos os outros vêm trabalhar sem esse auxílio! A Bruna vem, a Vitória, o Wagner... EDITE - É que a Bruna, a Vitória, o Wagner...moram aqui na Zona Sul, né? Como a maioria dos funcionários, a Ju é de Bangu. Ainda mais quando ela soube que o corte no auxílio foi pra aumentar a sala de jogos. AMANDA – Ah, sinceramente? Às vezes a gente faz de tudo pra melhorar o espaço de trabalho...Complicado, né, Edite? Quando o auxílio tava em 380 reais, ela não tava reclamando de vir de Bangu, né?! Aí sofre a mínima alteração, ela pede pra sair? EDITE – É… AMANDA – Preguiça de trabalhar. Tanta gente aí precisando de oportunidade… Mas vamos pensar com positividade! Eu quis sentar com você, minha fiel parceira e RH, justamente porque eu tive um estalo...Como ser um ser humano melhor do que eu já sou?! E de como implementar isso dentro da minha empresa que, com tanto suor e dedicação, eu herdei dos meus pais e… Já sei exatamente qual o nosso primeiro passo. EDITE - Que incrível, chefinha! Isso é o que importa no final das contas: reconhecer os erros e buscar a mudança, principalmente na evolução pessoal… Eu tomei a liberdade de preparar várias pautas e fiquei muito feliz quando você me passou o motivo da reunião. Conversei com o Financeiro pra ver qual é a nossa margem e montei algumas apresentações de várias coisas bacanas que podemos fazer que abrangem inclusão e diversidade, como reformas no prédio, rampa de acesso, matérias em braile, e tradutor de Libras… criar realmente um ambiente inclusivo pros nossos clientes, pros nossos funcionários, e aumentando a identificação com eles por meio da diversidade também. Abrindo programas de capacitação para pessoas de grupos marginalizados de alguma maneira. Doar para campanhas de.... (Amanda a corta) AMANDA - Não, na verdade, eu pensei em começar melhor ainda… (fazendo suspense) Tá super em alta, acho que vai ser incrível… a partir de hoje vamos implementar o TODES, gênero neutro, (empolgada) dentro da empresa. (As duas se olham. A chefe com olhar empolgado e Edite, chocada) EDITE - Essa já foi demais, eu me demito. AMANDA - Como assim, se demite? A ideia é super atual e… Edite, Editeee! (Edite sai e Amanda passa a refletir sozinha) AMANDA - Por que isso? Que mente fechada! Essa aí não quer sair da zona de conforto, do marasmo, ver que existem outras realidades além da dela… Olha… chocada. FIM DO INSQUETE INsquete: Sussurros da escravidão - Madalena Mateus Faconti Grupo: Coletivo Allegro (Guarujá - SP) CENÁRIO: Indefinido PERSONAGENS: MADALENA INSQUETE MADALENA - Boa tarde, você sabe dizer que horas que abre o portão dos menino sair da escola? (resposta) Eu estou esperando meu filho, Benedito. Começou hoje, o menino. Como é que é o seu nome? (resposta) Meu nome é Madalena. Seu pai chama como? (resposta) E sua mãe? (resposta) Minha mãe não conheci, não. Quer dizer, até conheci, mas não me alembro dela. Morreu eu tinha uns dois anos... O pai é que ficou sozinho, pra criar oito filhos. Fácil não, né? (ri) Aí, as coisa foram apertando pro meu pai sustentar aqueles filho tudo e quando deu a seca, ele me levou pra casa de uma mulher, dona Dirce, que ele trabalhava de jardineiro pra ela, pra modo dela criar d’eu. Comecei a morar na casa da Dona Dirce, eu tinha oito anos de idade. E já agarrei no trabalho da cozinha. A dona Dirce até que era boa pra nós. Quase nunca que ela batia, e as comidas que sobrava do almoço, nós podia comer tudinho. (ri) Nunca que eu tinha comido coisa boa daquele jeito. Minha maior alegria naqueles tempo era quando meu pai vinha fazer serviço no jardim da dona Dirce. Quando eu via ele, desembestava que nem o vento, mas era só eu descer que vinha a dona Dirce falar pra não atrapalhar o serviço do pai, que eu tinha que terminar minhas coisas.... Daí garrava a fazer o trabalho o mais ligeiro que dava, mas correndo mesmo. Mas quando terminava, meu pai sempre já tinha ido embora. (pausa) Eu era feliz. Tempo de menino é sempre alegre, né? A única coisa que me importunava era não arredar o pé pra rua. Que daqueles tempo, escola era só pra gente rica, que nem a filha da Dona Dirce, a Dolores, que já era moça estudada. Aí veio uns tempo que meu pai não aparecia mais na casa. Sonhava com ele, pensava nele quase todos os dias. E sempre pedia pra dona Dirce pra eu ir lá no sítio ver ele. Ela dizia que quando desse me levava, que era longe, que a condução era muito cara. Mas eu teimei, mas teimei, que ela acabou deixando eu ir. Mas disse que não ia me dar dinheiro nenhum pra passagem. Pra mim aquilo não me assustou, que eu nunca que eu tinha que visto dinheiro mesmo. E eu fui de a pé. Foi quase umas cinco horas andando e quando eu cheguei lá ... eles tinham mudado. Eu nunca mais soube da minha família. (pausa) Daquele dia eu chorei. Chorei de raiva mesmo. Raiva do meu pai, da dona Dirce que não me deixou vir antes. Até pensei em não voltar pra casa dela, mas eu ia ir pra donde? Eu não conhecia ninguém, não tinha dinheiro... tive que voltar. Cheguei lá quase que de noite, com uma fome dos inferno. Mas dona Dirce disse que se eu perdi as refeição, era pruque eu quis, e que eu só podia comer no dia seguinte. Aí eu fui dormi com fome mesmo. Fome de almoço, fome de pai, fome de ser gente. (pausa) Mas nada como um dia adipois do outro, e quando acordei já estava melhor, e bora trabalhar. Daí, quando eu tinha quase que uns 16 anos, dona Dirce morreu. E quem ficou com a casa foi a filha dela, dona Dolores. Casou, teve três filhos e eu criei os meninos mais ela. Namorado, eu nunca que tive. Só uma vez. Um pedreiro veio trabalhar uns dias na casa e se engraçou pro meu lado. De noite foi no meu quarto escondido. Foi a primeira vez que eu conheci homem. Mas logo que ele terminou a obra, foi embora. Não deixou nem recado. Das vez até deixou mas não me entregaram, né? Mas o que ele deixou, (ri) isso ele deixou, foi um filho no meu bucho. Quando dona Dolores se apercebeu que eu estava embuchada quem veio conversar comigo, foi o Toninho, o filho mais velho. Pegou na minha mão e falou que se eu quisesse tirar ele me levava no doutor. Ele falou que como é que ia criar um menino, sem ter onde morar? Aí, eu fiquei só olhando pra ele. Não sabia o que dizer. Não sabia o que ia ser de mim, do meu filho, não sabia pra onde ir. Só sabia que não ia tirar a criança. (pausa) Mas acabou que a criança nasceu, na casa mesmo, e eles me deixaram ficar. E olha que eles nem implicavam muito com o menino. Era só eu não tirar ele do quarto. O bichinho viveu até uns 6 anos só dentro daquele quarto. Só saía pra ir no banheiro mesmo. Até comida eu dava pra ele lá. Dei o nome de Benedito, por causa do pai dele. De uma vez, dona Dolores tinha ido no quintal e viu eu sair do quarto pra levar o Benedito no banheiro. No dia seguinte o Toninho veio falar comigo, que o menino já estava grandinho, e que podia ajudar no serviço da casa... Você não acredita na alegria desse menino de poder sair daquele quarto. Ele ficava abestalhado com cada coisa que ele via na casa. (ri) Mas logo o Toninho deu uns berro e acabou logo com a abestagem dele. Foi dois berro e o menino já correu pra trabalhar. Sempre foi trabalhador o Benedito. Foi no ano passado que os polícia foi lá na casa da dona Dolores. Junto dos polícia, veio uma mulher, que disse que eles tinham dado parte de trabalho escravo. Eu nunca que pensei que eu era escrava. Nem o Benedito. Nóis trabaiava lá, mas a dona Dolores é que dava tudo pra nóis. Casa, comida, roupa. Por mim eu ficava lá mesmo, sempre vivi lá. Mas o Benedito pediu pelo amor de Deus que ele queria estudar e nós mudamos. Recebi uma dinheirama da Dona Dolores. E hoje é o primeiro dia do Benedito na escola. Olha ele aí. Filho! Aqui, filho! FIM DO INSQUETE INsquete: Vaga de Idoso Carol Carlini, Carol Figueiredo e Luana Fernandez (São Paulo - SP) CENÁRIO: Estacionamento PERSONAGENS: REPÓRTER CÂMERA JADE DOLORES INSQUETE (Próximo às vagas preferenciais, um jovem repórter fala com a câmera, terminando sua reportagem) REPÓRTER - ...E é por isso que é muito importante respeitarmos os direitos… (Enquanto ele fala, um carro estaciona na vaga de idoso, fazendo com que o repórter se atrapalhe com a movimentação) REPÓRTER - … é … os direitos dos idos-- (Bem diferente do pictograma de idoso representado pela placa, Jade, uma mulher graciosa por volta dos 65 anos, desce do carro) REPÓRTER - (observando a mulher) Pera, pera, pera! Estamos presenciando um desrespeito ao vivo! (Indignado, o repórter vai em direção a ela) REPÓRTER - Com licença, você sabe que essa aqui é uma vaga de idoso? JADE - Sei, sim. REPÓRTER - Então você parou aí por quê? JADE - (irônica) Porque é meu direito? REPÓRTER - (olha para a câmera) Olha como é a cara de pau das pessoas! Fingindo ser idosa para conseguir uma vaga melhor! JADE - Que fingindo o quê? Dá licença que eu tô atrasada pra malhar. (Jade tenta desviar dele, que coloca o corpo na frente) REPÓRTER - MALHAR? Se você fosse idosa mesmo, iria pra hidroginástica. O repórter se vira, falando diretamente para a câmera. REPÓRTER - Me diga você aí, telespectador, sua vózinha, seu vôzinho, eles saem de casa pra puxar ferro? (Jade dá uma risada irônica) JADE - Ah, você acha que depois dos 60 é só novela e sopa? REPÓRTER - Não, claro que não... (O repórter revira os olhos enquanto tenta enumerar outras atividades) REPÓRTER - … também tem crochê, bingo e Silvio Santos. JADE - Sou idosa, com muito orgulho, sim! Pior você que é jovem e retrógrado! REPÓRTER - Você tá é com raiva por ser desmascarada ao vivo! Cadê os cabelos branquinhos como algodão? O rosto cheio de ruguinhas? O cheiro do bolo recém-saído do forn-- JADE - Pra sua informação isso é etarismo, hein? REPÓRTER - (para a câmera) - Vejam vocês, essa mulher que se diz idosa pra conseguir vantagem no estacionamento, me acusando desse absurdo! Absurdo é o que ela tá fazendo. É crime! JADE - Pra mim já deu! (Jade pega um cartão no seu carro, que mostra imediatamente para a câmera) JADE - Tá aqui meu cartão do estacionamento para idoso, DO GOVERNO. Tão vendo? (Ela afasta o cartão da câmera e quase esfrega na cara do repórter) JADE - Tá bom pra você? (O repórter tira o cartão das mãos de Jade e o afasta para conseguir ler melhor. Sua expressão muda, surpreso) REPÓRTER - Jade? Ah, faça me o favor! Eu até compraria o discurso se fosse uma Irene, Dolores... DOLORES - Oi? Chamou, bem? (O câmera se vira e uma senhora retrato do estereótipo de idosinha, de cabelos brancos e roupas floridas, está colocando seu capacete prestes a subir em sua bicicleta) FIM DO INSQUETE Abaixo, os números do código de barras que indica para a classificação internacional do documento. ISBN: 978-85-64500-03-7 Código de barras: 9 788564 500037 Link para o código de barras: https://drive.google.com/file/d/1dOyl_q53YhA-6f3vjApWL9AkPk35th7a/view?usp=sharing